A CONTINGÊNCIA DE VIVER
“ONTEM...
Silvério Bittencourt
Ontem enfiei-me por baixo de toldos comerciais
os pelos cheirando mal sonoros passos
ecoando através do corpo
pequenos prédios (grandes para mim) perdendo-se entre
a voracidade da chuva
a maquinaria que move o mundo arrastava-se na sua oxidação
mergulhei os pés alegremente num amontoado de barro do meio fio
olhos flutuavam no rubor dos pequenos córregos
segui em frente bebendo das próprias nuvens
enquanto um cão perambulava espreitando gestos
quase sonoros.
Publicado no Recanto das Letras em 11/05/2010
Código do texto: T2250119.”.
Salve, poetamigo Sivério!
De novo lembro Jack Kerouac, em "On the Road", e os respingos da geração “beatnik” americana da década de 60/70 do século XX pervivendo no teu texto, com uma limpidez ressuscitada. Está perceptível o "intertexto", a confluência de idéias e o consubstanciado relato das ruas.
O andamento rítmico é tipicamente urbano e o uso da "maquinaria que move o mundo arrastava-se na sua oxidação" universaliza o temário aparentemente singelo e bucólico.
Ao mesmo tempo, o poeta relata, intimista, que os "olhos flutuavam no rubor dos pequenos córregos" e "a voracidade da chuva" consome o andarilho urbano (perambulava) na sua observação.
O alter ego do poeta é o cão à espreita dos sons que a humanidade produz. E a poesia ladra, fugindo da oxidação. É o humano ser à busca de si mesmo. É tão forte a sugestionalidade, que até o analista crítico se embebe de Poesia... E a análise é um quase-poema.
O “intertexto” age novamente sobre quem lê e resta rico o (novo) universo pessoal, fruto da sugestão e da transcendência. No entanto, a sensação de "estranhamento" do leitor personaliza o teu poema e o caracteriza como um bom e inusitado texto poético.
Quando o texto é denso, a análise segue o mesmo emaranhado, com os cuidados de não abrí-lo por demais, até porque Poesia não é para ser explicada, e, sim, consumida. E o analista não é o dono da obra em exame.
Ao demais, é o autor que sugere ao crítico, através dos elementos verbais que compõem o poema, a abrangência do sentido conotativo que está lavrado veladamente dentro da peça poética. É necessário sempre lembrar que o poema é obra humana codificada, e não aberta. Impõe-se que o explorador descubra os códigos predominantes na obra criticada.
Eu mesmo, quando da avidez das iniciais descobertas – lá por 1978 – fiquei intrigado com a poesia do gaúcho Carlos Nejar (hoje titular de cadeira na Academia Brasileira de Letras), cuja obra é rica em hermetismos, e levei mais de dez anos buscando os tais “códigos” na riquíssima poesia do poeta/promotor de justiça, tentando penetrar no universo nejariano. Só depois de me afeiçoar aos seus elementos vocabulares é que me senti melhor, mais confortável dentro de sua expressiva e singular obra em versos.
Explica-se. O autor, poeta consagrado, estava (em sua obra) intelectualmente muito acima da compreensão do leitor iniciante e com pouca vivência na escola da vida. Eu estava com menos de 10 anos de Poesia... Os signos verbais me beliscavam como um animal peçonhento ou um siri de bom porte e fortes garras. O temor ao Novo me alimentava...
Dependendo do patamar intelectual e cultural do analista, o poema é redimensionado, chegando a ir muito além do que a singeleza da palavra poética original aparentava. Em palavras finais: quem dá a largueza ou a estreiteza da peça poética é o seu leitor, e não o autor da mesma.
É compreensível. Cada pessoa vê o mundo segundo o concebe...
Hosanas à palavra do dia-a-dia, porque ela retrata o homem em sua solitude frente ao presente e ao futuro. Para quem tem apenas vinte e um anos, o horizonte é amplo e todo pleno de esperanças...
Parabéns, amado irmão de estrada! Recebe os meus cumprimentos, poeta Silvério! Grato por alimentares minh’alma de mais de sessenta, que continua andejando na chuva a contingência de viver.
– Do livro DICAS SOBRE POESIA, 2009/10.
http://www.recantodasletras.com.br/tutoriais/2250670