O CACHORRO CORRE ATRÁS DO RABO
Recebo o poema abaixo, pretendendo ser, em dado momento, o fruto lúcido de confessa inspiração do autor. Examinemos:
“NEM CECÍLIA... NEM DRUMMOND...
Maria
não quero gestar a poesia
acadêmica, quadrada,
amarrada, amordaçada,
com regras a lhe encarcerar...
nem a sonho transpirada,
em seus versos picotada,
podada, assaltada,
de alma dilacerada,
somente prá em regras entrar...
não busco a poesia fria,
onde falta festa, folia,
dança e alegria,
a musa, o poeta
e até o mercenário...
escrita para agradar
somente o saber, o ego,
de alguns cartolas literários...
que acham que os poetas bons
fazem parte do passado
e desde lá não têm
mais nenhum consagrado,
por não serem Cecília ou Drummond.
quero a poesia musical
que despeja emoção
de um jeito simples
ou fenomenal...
riscando o papel
sem preocupação
com regras e estruturas...
busco acordar a poesia
por tanto tempo adormecida
– como era a minha vida –
que seja viva, afiada,
feita de acertos e rasuras,
que humilha e também orgulha
que seja faca e agulha...
que corta e também sutura!
não acho ser minha poesia
uma mera mercadoria,
jogada sem estribeiras
nas prateleiras de uma feira
querendo só se vender
em eterna promoção...
vejo-a um talento precioso,
por ti a mim dado, como dom, tesouro...
em letras que contam histórias,
falam de pessoas – memórias –
dizem de Deus, de mares, estradas,
dores de amor e paixão...
dos sentires da alma poeta
que toca com os dedos palavras,
como se fossem as cordas
de uma harpa ou violão!”.
– enviado por e-mail privado, em 27/04/2010, às 17h19min.
O que temos aqui são os versos de um diletante, aquele que não tem nenhum compromisso com a arte, e que a exerce por gosto, como amador, e não pelo ofício de dizer; registrar para a história de seu tempo e dos costumes a dimensão humana e o seu entorno.
Aparenta ser o cúmulo da possessão e do egoísmo, o exercício do ego na mais alta escala, alguma coisa como fechar os olhos para a humanidade sequiosa de reflexão e de aprendizagem.
O diletante reduz a palavra poética ao jogo lúdico de sua vida ou à terapia pessoal para fugir da realidade. Só aproveita ao autor do poema, a ninguém mais. Confirma a figura caricata do bobo-da-corte e fixa a concepção popular que “de médico, poeta e louco todo mundo tem um pouco”...
A tentativa de profissionalização é a minha atual cisma, depois de mais de trinta e oito anos de construção pessoal como humana criatura e fruição da Poesia dos outros, na consequente confluência que deságua em meu texto poético, nascido na placenta sanguinolenta da condenação ao pensar.
Discordo totalmente, no mérito, do que está contido no poema, porém lutarei contra todos e contra tudo na afirmação do direito que o autor tem de conceber e dizê-lo. E, com muito respeito, o ponho na vitrina, à consideração dos leitores.
É nas diferenças de concepção que se afirma o espírito humano. Ninguém é dono da verdade. A teoria das concepções opostas vivifica o espírito, ainda mais em Poesia, que é, em verdade, o exercício do mistério das idéias, coisas e fatos tidos, nem sempre havidos.
Porém, o teor desta proposta poética não deixa de ser um menoscabo à palavra do ser e de seu destino: um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Nada mais.
– Do livro DICAS SOBRE POESIA, 2009/10.
http://www.recantodasletras.com.br/tutoriais/2225215