Meu irmão, ah, meu irmão!


                 Ontem fui visitar meu irmão no hospital.O segundo irmão. Ele havia saido do CTI, após uma cirurgia de alta complexidade: a retirada de um tumor no cérebro, da qual não sabemos ainda as consequências. Ali, assentada em uma cadeira, observando-o enquanto dormia, eu me lembrei de um dia há vinte e cinco anos atrás: meu primeiro irmão morria.Era véspera do aniversário de meu pai e do  terceiro irmão, ou seja, véspera do dia de hoje, vinte e um de maio. Ligando os tempos, observei o quanto a vida, assim como a conhecemos, passa rápido.Fiquei pensando na inutilidade de tantas coisas e na solidão da morte, por mais que se esteja acompanhado, alguém segurando sua mão.Na morte ninguém vai conosco. Fiquei pensando em meus irmãos, fiquei pensando em Tarcízio, o que já se foi.

     Tarcízio era uma pessoa especial. Diferente. Ainda hoje, passado todo esse tempo se lembram dele e falam a respeito com saudade. Ainda hoje me perguntam: Você é irmã do Barbudinho?

        Quando viemos para Lavras ele era magrinho e miúdo. Ele nunca cresceu muito e quando aqui chegou já apresentava uma certa penugem no rosto, daí o apelido. Nunca foi de estudar, fazia cada ano em dois, não chegou a completar o antigo primeiro ano de ginásio. Preferia a vida livre da zona rural, desaparecendo nos campos, deixando todos malucos a sua procura. Lembro especialmente de uma vez, quando procurado ansiosamente por todos os lugares, incluindo as regiões das águas,levados pelo  medo de que desaparecesse no rio ou se afundasse em uma lagoa qualquer, foi encontrado em uma espécie de sótão que havia em nossa Padaria e onde subira acessando os sacos de farinha empilhados. Quando viemos para Lavras ele se adaptou logo de uma forma toda sua. Continuou a ser quem era, vivendo como queria.Sempre rodeado de amigos, os mais diferentes possíveis, de todas as classes sociais. Trouxe com ele uma paixão: o Botafogo. Aqui encontrou uma nova: a Associação Olímpica. Quando morreu, coberto pela bandeira da Olímpica, foi em sua sede que o corpo foi velado. Ruim de bola, compensava essa deficiência com a paixão. Seu quarto era empilhado de revistas esportivas e cadernos com anotações de escalações de times de futebol. Tornou-se juiz e roubava descaradamente para seu time. 

           Trabalhar? Só se fosse seguindo suas próprias regras. Ficava alí, no balcão, até se cansar e sair para dar uma volta. Um determinado dia, resolveu se casar. Nessa ocasião já era bem redondinho e sua cabeça não ultrapassava o ombro de sua alta e magérrima noiva. Arranjou então o seu primeiro emprego de verdade: foi ser porteiro de motel, o Cê que sabe. O motel era distante, na Rodovia e ele se dirigia a pé para lá. O coração de meu pai se confrangeu e então montou um pequeno negócio para meu irmão, um depósito de pães. Foi morar com a moça na casa junto ao depósito e os filhos avisaram que iam chegar. Chegar até chegaram mas foram embora antes que ouvíssemos o seu primeiro choro. Natimortos, três meninos:primeiro um, depois os gêmeos. E veio a primeira crise de pancreatite a qual sobreviveu e veio a segunda que o levou.

        Eu tenho boas lembranças dele e tenho más também que a vida não é feita de retalhos escolhidos. Com ele vivi experiências intrigantes: no dia de sua morte, eu, de tocaia do lado de fora do CTI, de repente desapareci de mim mesma. Transportei-me para dentro do CTI onde pude presenciar uma cena: uma enfermeira chamava um médico que se aproximou de sua cama. A enfermeira era loura, o médico indiano. E alí ficaram rodeados por todos os meus parentes mortos, todos vestidos de branco. Parentes que eu nunca conhecera, mas estavam todos ali, rodeando. Meu tio jovem, morto recentemente, também queria entrar, mas uma barreira o impedia. Era o único que não estava de branco. A impressão que tive era que o médico viera para impedir que morresse. Quando dei por mim estava no quarto do hospital que nos fora reservado. Não me lembro de ter ido para o quarto mas sei que alguém me levou. Na manhã seguinte, assim que minha mãe saiu da beira de seu leito, ele virou para o lado e morreu.

       Durante um mês visitei seu túmulo diariamente. Meu pai e eu, em horários separados. Nunca nos encontramos. Em uma dessas vezes, logo no começo, passei por uma emoção sem igual. Algumas pessoas saindo do cemitério pararam frente ao portão, conversando. E eu ouvi: conversavam sobre ele. ...a pessoas mais generosa que conheci. Todos concordaram e começaram a narrar situações. Eu não parei para continuar ouvindo. Queria ter para sempre  em minhas lembranças o eco das primeiras palavras que tinha ouvido:...a pessoa mais generosa que conheci...

         Neste tempo todo, uma única vez sonhei com ele: Eu estava no quintal de sua casa e o vi, além da cerca, em um jardim de flores amarelas. Ele caminhava virado para trás, acenando adeus. E então se foi...para sempre.  

        Mas ontem...ontem ele estava lá, tenho certeza. Olhando com carinho o  segundo irmão, apenas olhando. Conferindo para saber se tudo estava bem. E eu senti uma saudade tão grande dos tempos em que éramos todos crianças e nem desconfiávamos do que a vida iria nos reservar. Ah, meu irmão, que coisa boa foi ter sentido você ali!.