Assassinato nas Laranjeiras
"As crianças acham tudo em nada,
os homens não acham nada em tudo."
Giacomo Leopardi
Rua das Laranjeiras, 10 de Dezembro de 2003.
- Mãe, mãe – gritava o garoto assustado. – Vem ver o que eu achei.
- O que foooi, menino?
- Tem um homem morto lá no terreno baldio!
- Meu Deus! - E a mãe saiu toda apressada para a rua, que já estava toda cheia de gente.
- Você fica aí, moleque – dizia a mãe não sei por quê, enquanto cobria com um lenço seus cabelos cheios de bobes.
- O que aconteceu, moço? – perguntou uma velhinha de carrinho de feira.
- Facada!
- Ai, meu Deus! – exclamou a senhora pondo a mão no coração e fazendo três vezes o sinal da cruz.
A multidão já se impacientava esperando a polícia. Um outro menino resolveu levantar a folha de jornal, que cobria o dito cujo.
- Não Joãozinho! – disse a mãe puxando o garoto sem desgrudar os olhos do jornal.
O alvoroço só aumentava.
- Bem que eu ouvi uma briga ontem à noite – dizia um homem, ainda de pijamas, com o cabelo todo em pé. – Vocês não ouviram?
- Ouvi sim! Tanto é que eu comentei com meu marido.
- Teve até tiro pelo que soube!
- Não foi tiro não, foi garrafada.
- Garrafada?!
- É. Eu estava ontem no bar quando dois indivíduos começaram a brigar. Truco, sabe minha senhora... Dinheiro, pilantragem, bebedeira, quase sempre termina em discussão.
- Se isto é discussão, então minha mulher é uma santa! – exclamou rindo o moço do pijama.
- E meu casamento, um paraíso! – complementou um outro que foi logo repreendido pela mulher, sob a risada de vários marmanjos.
- Vamos respeitar o defunto, senhores – lembrou o padre que segurava uma Bíblia.
Finalmente chegava a polícia. Até que enfim! – festejava o povo, logo ficando apreensivo novamente.
- Vamos dando licença aí, pessoal. Isto aqui é trabalho para profissionais – ia explicando o gordo policial enquanto abria caminho pela multidão. – Por favor, isto aqui é muito forte: mães, levem seus filhos para casa, senhoras, se possível não vejam essa cena...
- Vamos filho, vamos – dizia mecanicamente a mãe apenas puxando a camiseta do filho, sem sair do lugar.
- Preparados? – bradou o policial.
- Siiim!!!
O policial já se preparava para levantar o jornal do defunto, com aquela cara séria e respeitosa, escondendo toda sua aflição, quando eis que o jornal se mexeu, assustando e tumultuando a todos.
- Meu Deus, Santa Maria, rogai por nós! – assustou-se a velha senhora tapando o rosto com as mãos.
- O que se passa por aqui? – perguntou o policial, perplexo, sem saber que ação tomar.
Os homens também estavam todos temerosos e nenhum se arriscava a pisar naquele terreno amaldiçoado. As mães mantinham-se estáticas, segurando seus filhos, alguns cheios de pavor, como se vissem com os próprios olhos o pior de seus pesadelos, outros plenamente fascinados, querendo a todo custo libertar-se dos braços maternos.
- Isto certamente está ocorrendo devido à falta de fé de nossa comunidade – afirmou o padre um tanto triunfante.
- Isso mesmo, o padre! Isso é um problema para o padre! – disseram todos em uníssono, carregando o padre até lá.
- Isso não é um problema para o padre – dizia o próprio tentando esquivar-se -, é um problema unicamente de vocês, que não têm fé, que vivem em pecado.
No entanto, como o padre sabia que não podia faltar à sua responsabilidade de autoridade espiritual do lugar, caminhou até o defunto, apertou a Bíblia com força, pediu proteção aos céus e... eis que um movimento mais brusco ocorreu, fazendo o padre saltar para trás, protegendo-se com seu crucifixo. E nessa posição digna de um quadro, o padre erguendo seu crucifixo e o povo todo aglomerado e apreensivo atrás, saiu por baixo do jornal um carrinho de controle-remoto, que, qual habilidoso jogador de futebol, costurou para lá e para cá todos os seus defensores, terminando por passar debaixo das pernas da inconformada senhora, escapando em gol pela rua afora! O gordo policial, retomando toda a sua macheza, indignado, encaminhou-se, firme e resoluto, até o defunto e levantou o jornal. Era um boneco, maltrapilho e sorridente, como se se divertisse com tudo aquilo. Por fim, a revolta explodiu na comunidade, alguns ficaram uma arara, outros se derramaram em lamentações, alguns ainda morreram de rir; mas o policial, todo categórico, afirmava que os culpados iriam pagar caro por tal brincadeira infame e desrespeitosa. Mas estes já estavam longe, gargalhando e relembrando a engraçada cena, preparando outras mil traquinagens.
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