A melhor cidade do mundo
Desde menino, Bernardo fora acostumado a perambular com o avô pela cidade. Macapá ainda trazia poucas ruas e avenidas asfaltadas. Teófilo, avô de Bernardo, era um dos Sacacas * da cidade: mestre na utilização da medicina natural para curas de muitas doenças. Não cobrava pelas receitas de ervas e outras plantas e pelas visitas que fazia à residência de populares. Gostava de ajudar as gentes.
Nessas caminhadas, Teófilo contava, na maioria das vezes, com a companhia do neto. Foi assim que desde cedo Bernardo aprendeu o uso eficaz dos recursos da natureza contra muitos males, bem como o nome das principais ruas e avenidas da cidade. Sabia nomear as ruas, que eram traçadas paralelas ao Amazonas, e as avenidas, que atravessavam as ruas e corriam para o mesmo rio. Quando chegava alguém novo na cidade, vô Teófilo, sempre informado sobre os recém-chegados e prestativo como poucos, exibia o conhecimento do neto:
_ Bernardo!
_ Que é, vô?
_ Ensina as ruas que se alinham ao rio, aí pra seu Diógenes.
_ Começando lá pelo rio, seu Diógenes, as ruas são: Cândido Mendes, São José, Tiradentes, Eliezer Levy, Odilardo Silva, Jovino Dinoá, Leopoldo Machado, Hamilton Silva, Manoel Eudóxio, Professor Tostes, Hildemar Maia e Santos Dumont. O senhor tem que saber se situar também nas avenidas. A Fab é a avenida principal de Macapá. É aquela onde fica o Palácio do Setentrião e agora também o prédio da prefeitura. É a mais bonita, a mais bem-tratada e a mais larga da cidade. É lá que fica também a praça da bandeira, onde todo ano montam o palanque para as autoridades assistirem aos desfiles de 7 e 13 de setembro. A padre Júlio é outra muito movimentada porque se emenda com a estrada que vai para o Distrito de Santana. A Feliciano Coelho é a avenida de mão-dupla que passa em frente à escola Alexandre Vaz Tavares _ eu estudo lá. Sabendo identificar as ruas já fica mais fácil para o senhor se conduzir pela cidade. O resto e as outras avenidas o senhor se informa por aí.
O vô Teófilo ficava todo orgulhoso da eloqüência e conhecimento que o neto detinha e que sabia dividir com os outros. Puxou a mim _ pensava.
Bernardo cresceu e viu a cidade crescer junto. Outras ruas e avenidas surgiram, novos prédios e novas casas foram construídos. Viu as velhas praças e os bairros antigos se modernizando e novas praças e novos bairros se configurando. Viu, outrossim, alguns bairros surgindo desordenadamente, sem infra-estrutura básica, devido ao período de imigração desenfreada com a chegada da Zona de Livre Comércio. Bernardo sabia amar como ninguém aquela cidadezinha aconchegante, sem prédios com mais de três andares.
Longe dali, em busca de novos conhecimentos em universidade de outro estado, Bernardo recordava o tempo em que o avô o levava para passear na Fortaleza de São José de Macapá. Lá de cima, apreciava com euforia as voadeiras saírem dos fundos do forte e lançarem-se às avenidas aquáticas. Via também com espanto o movimento dos ônibus saindo do mercado central e as pessoas, como formiguinhas inquietas, ansiosas naquele vaivém maçante. Trazia sempre vivas na mente suas estripulias pelos bairros que mais amava: Julião Ramos, antigo bairro do Laguinho, onde nascera e fora criado, e o bairro do Trem, onde estava situada a casa de sua tia e a escola na qual passara nove anos de sua vida estudando.
A lembrança dos amigos, a saudade do vô, a amizade da população, o encantamento da orla, agora com o bondinho que incrementa ainda mais o passeio no trapiche, e mormente a tranqüilidade da cidade, onde no seu tempo de criança ainda se podia dormir à noite com as janelas abertas, eram alguns dos quesitos que faziam Bernardo encharcar os lencinhos que ganhara do avô no último aniversário.
O falecimento do vô Teófilo fez Bernardo trancar, por uns meses, a matrícula já no final do último bimestre do curso de Medicina. Não poderia deixar de ir a Macapá homenagear aquele que lhe ensinara os rudimentos da medicina natural.
Decidiu formar-se em medicina tradicional para estudar e procurar validar o conhecimento do qual seu avô se orgulhava. Queria também honrar o médico que não teve diploma. E para isso ignorou as dificuldades, exceto a monstruosa saudade que sentira quando estava fora.
No avião, de volta pra casa, e com o diploma nas mãos, Bernardo avaliava o crescimento de sua cativante cidade. Reconhecia que Macapá era um bebezinho se comparada a megalópolis como São Paulo, onde morara durante os anos de faculdade. Todavia, ali estavam suas raízes. Ali se constituíra criança e homem também. Amava a privilegiada do Equador como quem ama a primeira e inesquecível namorada. Ao descer do avião e pisar o solo sentiu vontade de este beijar. Sou eu parte da cidade ou a cidade é que é parte de mim? Seria Macapá a melhor cidade do mundo? _ indagava-se. E concluíra: a melhor cidade do mundo é aquela onde mora nosso coração.
*Sacaca foi um dos grandes nomes no conhecimento e uso da medicina natural no Amapá.