Felicidade incomoda

Da primeira vez, ela não deu importância. Encontraram, casualmente, um conhecido do marido no clube. Ele fez as apresentações: “minha esposa e minhas filhas do primeiro casamento”. Devia ser distração: que homem desligado! Da segunda vez, ela riu da brincadeira: que senso de humor peculiar! Da terceira vez, ela não achou a menor graça. Ele devia estar aprontando alguma...

- Que negócio é esse de filhas do PRIMEIRO casamento? Os votos, a igreja, a barriga, as fraldas... lembra? Era eu, poxa! Ou você nem se lembra mais?

Lembrar, ele lembrava, mas chegara à conclusão de que felicidade atraía azar. Para ser franco, ele já desconfiava disso há muitos anos. Sempre que a vida ia às mil maravilhas, era tiro e queda! Resolvera se cuidar. Família bonita, unida e estruturada era pior do que praga de mãe! Que os conhecidos secretamente sonhassem: “Trocou seis por meia-dúzia. Se fosse comigo, escolhia uma mulher bem nova, da idade da filha dele”. Que para as companheiras comentassem: “coitado, deu azar no primeiro casamento”. E que elas acrescentassem: “aposto como ele ainda pensa na primeira mulher”. Com um único gesto, virava um tonto infeliz para o mundo e obtinha a carta de alforria. Podia ser feliz em paz.

Ela considerou o argumento. Mais tem Deus pra dar do que o Diabo pra tomar, mas... Tinha a Marta, a mais popular e inteligente da classe na faculdade, com aquele cabelão preto na altura da cintura... Soube por aqueles dias que ela agora fazia artesanato e, após três casamentos desfeitos, juntara-se à Ana, outra colega daquele tempo. E o Júlio, meu Deus, que cruz! E a Carminha, ô carma...

Felicidade é fogo. E não é só felicidade plena, meia felicidade já incendeia. Pensou nos bate-bocas, por bobagem, com o marido. Das vezes em que de repente a voz falhou, logo no dia de uma reunião importante. De quando atropelou aquele cachorro, surgido do nada. Da vez em que tropeçou nas próprias pernas e teve que ficar de molho um tempão, com a perna engessada. Devia ser alguma felicidade que ela, inadvertidamente, tinha cometido por aí.

Inventar, ela não se atreve. Aprendeu a criar evasivas. Se lhe perguntam do trabalho que adora, pensa nos planos futuros de aposentadoria e responde: “ Um dia eu ainda largo tudo e cruzo os braços!”. Para falar do marido, um amor de pessoa, saca lembranças de vinte anos atrás e filosofa: “tudo muda com o tempo”. Sobre filhos, suspira, enigmática: “... sem tê-los, como sabê-lo?”. A vida, ela vai levando, a saúde vai como Deus quer, o dinheiro dá pro gasto, os amigos... ah, os amigos! Amizade verdadeira é tão rara hoje em dia...

Uma tragédia na manga - o assalto ao vizinho, a morte do tio há 4 anos - é a salvação, quando dá o azar de acontecer um elogio público, uma promoção no trabalho, a aquisição de um bem. Para acalmar os ânimos, treinou em frente ao espelho um ar compungido para os cumprimentos: “... obrigada... não fosse tanta coisa...”

Virou exemplo de garra e coragem. A coitada merecia ser mais feliz. Sempre tão discreta: não se queixa, nunca fala dos problemas pessoais. Que mulher! – comentam, admirados e solidários.

Alheia a tudo, ela segue a vida, cada vez mais feliz.

Celebra a boa sorte com a família e os amigos. E recomenda.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 16/05/2008
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T992462
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