DA FAMÍLIA NADA SE LEVA

Não me espanto com os crimes cometidos dentro das

famílias. Não é porque tenha algum motivo criminoso

inconfesso, mas porque a família não é nada do que

acreditamos - e desejamos - que ela seja. Pensar e me expor assim dá

arrepios em meus parentes e aderentes. A família como a desejamos; unida,

feliz, sincera e honesta, é invenção recente, talvez menos de um século. A

família sem conflitos e disputas não existe, pois é um local em que podemos

brigar à vontade e sermos amados no final. Até há pouco tempo - se

pensarmos nos milhões de anos em que existe - a família sempre foi arena

de lutas, de ódio, de trapaça e de morte.

Dentro da primeira família - para os crentes judaicos/cristãos -

aconteceu o primeiro crime da história da humanidade. Caim, o primeiro

filho, era agricultor. Abel, seu irmão, era pastor e agradava a Deus sacrificando

os primogênitos de seu rebanho. Mas Deus não gostava de Caim e das

ofertas que este fazia com o que colhia da terra. E, por isso, Caim matou

seu irmão Abel. Que sentimento teria tomado conta de Caim? Teria sido

inveja? Ciúmes? O ódio que Caim sentia seria por Abel ou por Deus que o

rejeitava? Abel, rigorosamente, não fez absolutamente nada e

deliberadamente nada para prejudicar Caim diante de Deus. Caim sabia

que não poderia matar o Deus que não gostava dele, mas, sim, aquele de

quem Deus gostava. Caim, um agricultor, regou a terra com o sangue de

seu irmão, levado ao crime justamente por aquele que poderia tê-lo impedido. Expulso de sua terra por Deus, este lhe deu um sinal de

identificação para que não fosse morto por quem o encontrasse errante,

pois quem o matasse seria vingado sete vezes. Foi para o leste do Éden.

Lá casou, teve um filho, Henoc, e construiu uma cidade. A civilização

nasce de Caim; a auto-suficiência e a violência geraram uma sociedade

fundada na hostilidade e na competição.

A primeira família durou pouco tempo, como se imagina, porque

tudo isso aconteceu após a expulsão de Adão e Eva do paraíso, e eles

viveram mais de um século sozinhos. Quando Adão completou 130

anos gerou seu terceiro filho, Set e por mais 800 anos gerou outros

filhos e filhas, morrendo com 930 anos. A Terra estava cheia de famílias.

Depois, muito depois, Deus mandou o Dilúvio para matar tudo

o que tinha criado, arrependido que estava e desiludido com a raça

humana, violenta e corrompida. Escolheu a família de Noé para ser o

embrião de um novo mundo, de uma nova raça. Quarenta dias e

quarenta noites de chuva acabaram com a humanidade, com os animais

e com as plantas. Restaram apenas Noé, sua mulher, seus três filhos

homens, as mulheres deles, e um casal de cada espécie animal,

acomodados num navio monumental. Quando saíram a terra seca, Deus

disse: “Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, porque

os projetos do coração do homem são maus desde a sua juventude.”

Sem, Cam e Jafé, os filhos de Noé, repovoaram a terra. A família de

Noé refez a humanidade, uma espécie de segunda parte da espetacular

criação, e começaram tudo outra vez.

A família de Noé saiu da arca e foi cuidar da vida. Noé, que era

agricultor como Caim, plantou a primeira vinha que se tem notícia e

dela fez vinho e bebeu e tomou um monumental porre, ficando

completamente nu dentro de sua tenda. Cam viu o pai nu e foi contar

para seus dois irmãos. Sem e Jafé, respeitosamente, tomaram o manto

do pai e, andando de costas para não vê-lo nu, cobriram o patriarca.

Quando Noé acordou ficou sabendo o que seu filho mais jovem tinha

feito. Amaldiçoou Cam, o antepassado dos cananeus, adversários

mortais de Israel.

E foi da família do amaldiçoado Cam, que se gerou um filho

chamado Canaã, e dele surgiram as nações, as primeiras, dos jebuseus,

dos amorreus, dos girgaseus, dos heveus, dos araceus, dos sineus, dos

aradios, dos samareus e dos emateus, que se dispersaram pelo mundo

com milhares de famílias.

Não me espanto com os crimes cometidos dentro da família,

embora não tenha ainda conseguido deixar de ficar confuso e atordoado

com a barbárie. Mas a história e a mitologia, que se juntam e se

confundem, estão repletas de estórias de criminosos familiares. Medéia

assassinou os dois filhos para se vingar do marido que arranjou uma

amante. Édipo, o bonitão, matou o pai para ficar com a mãe... e ela

aceitou. Abraão, outro patriarca, quase mata o único filho na terra de

Moriá para mostrar que temia Deus, que entrega seu filho Jesus à

morte mais cruel e humilhante.

Dois mil anos depois, as famílias continuam a se destruir com a

mesma desenvoltura. Leio num jornal uma relação de crimes

acontecidos em famílias, só neste ano de 2002 no Ceará. Em

Uruburetama, em janeiro, um adolescente de 16 anos mata o pai a

pauladas. Completamente embriagado, alegou que o pai batia na mãe.

Em abril, um pedreiro mata a filha de 7 anos com pedradas na cabeça.

Ainda usou o cabo de uma vassoura para perfurar duas vezes o peito

da menina. Sua declaração é chocante: “Não sei por que matei minha

filha. Eu gostava muito dela”. Em Canindé, também em abril, um homem

estrangula a mulher, com quem vivia ha três anos, por ciúmes. Em

Barro, no mês de maio, um jovem de 17 anos matou o pai a golpes de

machado, enquanto a família jantava. Em junho, em Fortaleza, um

fugitivo do presídio, de 21 anos de idade, mata o irmão de 20 anos a

golpes de faca. Em Moraújo, depois de uma discussão, um agricultor

de 51 anos de idade, mata o filho de 26 porque diz ter sido agredido

por ele. Em Fortaleza, um homem de 30 anos de idade matou a mãe

com tiros na cabeça e depois suicidou-se porque ela queria que ele

deixasse de fumar. Em julho, em Sobral um jovem de 20 anos de idade

mata a irmã de 12 anos a golpes de faca depois de tentar estuprá-la.

Em Independência, em agosto, uma mulher de 37 anos de idade mata

o irmão de 28 anos a pauladas. Na delegacia disse que não sabia por

que tinha matado o irmão. Em Jericoacoara, numa briga por herança,

um agricultor de 44 anos de idade mata a irmã de 59 anos e mais

outros dois homens. Brigava por mais terras da herança do pai, ainda

vivo, de 96 anos. Em Maracanaú, em setembro, uma criança de seis

meses é assassinada pela tia, uma viúva de 25 anos de idade e mãe de

uma menina de 4 anos que presenciou o crime. O motivo, disse, era

revolta com as irmãs que nunca gostaram dela. Em Jaguaretama, em

novembro, encerrando o ano, espero, mas não acredito, quatro crianças

foram envenenadas pelo irmão com pesticida depois de uma briga com

a irmã que recebe a aposentadoria dos pais.

Como da vida, da família nada se leva. A instituição família

não está ameaçada, ao contrário do que muitos acreditam, porém a

incidência de crimes está aumentando tanto que corremos o risco de

achar que isso acontece desde o raiar da humanidade; e que por isso

não devemos nos preocupar. Afinal, como diz Vulpino Argento, o

demente, nada como a família para um bom incesto.

PS. 1 = Do meu livro “Tem Gente”, nas livrarias

PS 2 = Em Porto Alegre/RS, esta semana, a mãe que matou a facadas a filha de 4 anos de idade e o filho de 6 meses, porque brigava muito com o marido,foi condenada a 18 anos de prisão.Mas não fez nenhum sucesso na mídia.

CESAR CABRAL
Enviado por CESAR CABRAL em 15/05/2008
Código do texto: T990393
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