Já irei tarde...
Pelas contas otimistas que tenho feito pelo menos umas duzentas pessoas me contemplarão da porta da funerária e dirão “já foi tarde”, e eu inerte naquele caixão cheio de flores, o que contradirá os pedidos que fiz no “projeto do meu velório”, haverei concordar com tais mequetrefes uma vez na vida, ou seja, na morte. Acharei também que já fui tarde! Afinal vivo há anos me preparando para o dia final na terra, e na certeza da ida para um Paraíso onde ressuscitarei sem sexo e sem “pensamentos malignos”, portanto podem ressuscitar ao meu lado as minhas vizinhas, as estudantes da faculdade da minha rua, as mulheres dos meus amigos, que não correrão risco algum.
Lá no além nem saberei o que é feiúra ou beleza, na outra vida seremos todos iguais distantes de preconceitos. As harpas dos anjos de Viena dos grandes compositores e das valsas dos grandes bailes, ou as harpas dos anjos da Bahia onde os passos são de axé, serão instrumentos da mesma quantidade de cordas, e nenhum professor há de dizer que harpa de baiano é de uma corda só, a exemplo do berimbau, que segundo ele é mais fácil de tocar!
Lá a única coisa que se toca, mesmo ao lado das bonitas ressurreições acima descritas, é a harpa nada mais! Eis ai a justificativa para eu concordar com os que querem me ver pelas costas, ou melhor; de frente, deitado, calado e pesam que também surdo, rirei sem que eles ouçam, pois até meu minuto final os fiz ficar irados dizendo que “já fui tarde!”. Que raiva terão eles quando o “já foi tarde” não terá o efeito que desejarão, já que me antecipo aqui deixando com testamento a minha satisfação, por estar quitando a casa própria que a viúva não terá prestações a mais a pagar, e ali abrigará meus filhos.
Se eu vivo pedindo a Deus, em minhas orações, para que me guarde um lugar no Paraíso, por que não vou logo antes que alguma outra alma o ocupe? Já tive filhos, já escrevi livros, já plantei uma árvore e até cai de um dos seus galhos, por qual razão estou fazendo hora na terra? Se não poderei mais usar o computador para continuar escrevendo crônicas ou poesias, alguém por mim o fará. Em todos os recantos da terra haverá quem supra a minha falta. Afinal, ninguém é insubstituível, existem aqueles que substituem Deus pelo Diabo, e estes sim têm medo de ir, tarde ou cedo!