ISTO SE CHAMA SOLIDARIEDADE

A irmã mais nova do meu pai faleceu com quase 90 anos, depois de sofrer uma cirurgia. A inevitável fratura na cabeça do fêmur, por uma queda boba. O que mais a fez sofrer foi ser tocada, lavada, trocada por enfermeiras estranhas.

Solteirinha da silva, nunca tinha sido exposta daquele jeito. Ficou profundamente deprimida com tudo. Depois de colocada a prótese, voltou para casa em São Paulo para se recuperar.

Em vão, a depressão não a deixava interessar-se mais pelo tratamento. De nada adiantava os sobrinhos insistirem para que se submetesse aos necessários exercícios de recuperação. O resultado foi uma gangrena que a levou embora. O enterro seria às 10:30 em Jundiaí, onde moravam vários sobrinhos.

Eram mais ou menos umas 9h da noite e estava eu ao lado do telefone aguardando a resposta de uma chamada minha ao meu filho através do bip. Queria saber se ele poderia me levar para Jundiaí a fim de estar no velório e no enterro.

O telefone toca. Deve ser ele, mas não era. Era a esposa de um primo meu, com quem fui criada, avisando que o cunhado, o outro irmão, morador no Rio de Janeiro, ao vir para o enterro de minha tia, havia morrido numa batida frontal com um caminhão. Ele era meu parente por parte de minha mãe, mas gostava tanto dessa minha tia paterna, que tinha deixado seus afazeres para vir a Jundiaí prestar sua última homenagem e morreu no caminho...

Nem preciso dizer que me descontrolei com o susto, a estupefação e a dor. Ela desligou pedindo que avisasse aos meus filhos e que o enterro seria no dia seguinte por volta do meio dia, lá no Rio.

Nessa situação desesperadora, só consegui lembrar-me do telefone da central do bip e atenderam:

Central Mobi - boa noite - Sandra - código, por favor?

Eu não sabia o que dizer. Meu descontrole era total. A atendente usava de todo recurso para me acalmar e me pedia o número do bip do meu filho.

Ela dizia: não desligue, me diz seu nome, me conte o que está acontecendo. Aos trambolhões, com os soluços interrompendo minha voz, o aperto no coração, fui conseguindo dizer meu nome, contei-lhe aos prantos o que estava acontecendo, disse o nome do meu filho, não conseguia lembrar-me do número.

Com uma paciência infinita, presença de espírito e uma imensa solidariedade, essa moça foi me acalmando, procurou o número necessário pelo nome do meu filho e me mantendo na linha para me acalmar, transmitiu a mensagem para ele com toda a urgência que era preciso.

Quando viu que eu já estava conseguindo coordenar as idéias me pediu que desligasse o telefone para poder receber a chamada de retorno.

A princípio nem consegui entender o que dizia, mas depois desliguei. Em seguida meu filho deu o retorno e aí pude pedir ajuda para meu desespero e para as providências que eram necessárias tomar. Não sabíamos quem iria ao enterro da tia e quem iria para o Rio.

Meu Deus, que sufoco! Foi um dos piores momentos da minha vida. A morte da minha tia era mais fácil de encarar, por causa da idade avançada e do mal que a acometeu e que foi se agravando aos poucos. Contudo, a do meu primo, não. Ele tinha 46 anos, era o mais alegre e divertido dos três irmãos, uma palhaço na família. Ele gostava muito de minha tia, pela bondade dela quando o recebia em suas viagens a São Paulo. E ele a divertia muito com suas brincadeiras!

Era próximo da meia noite, quando mais calma, consegui ligar na central e pedi para falar com a Sandra. Atendeu ainda preocupada comigo, agradeci muito, do fundo o meu coração e prometi nos dias subseqüentes dar-lhe mais alguma notícia. Foi o que fiz.

Mas esta crônica, narrando um fato da história de minha família, tem um fim muito especial.

Eu a escrevi por causa daquela atendente, a moça Sandra, que extrapolou todas as suas funções, deixou um pouco de lado as frases preestabelecidas do seu trabalho, para atender alguém em estado crítico, com toda a paciência e muito amor do seu coração generoso.

É por ela, a quem dedico um constante agradecimento, que faço questão de deixar registrado para que muita gente tome conhecimento que ainda existe um coração bondoso, uma profissional competente que não se limita ser eficiente no seu trabalho, mas sabe o valor do ser humano, ainda mais em apuros, como eu estava.

Uma noite, saí com uma amiga e, sabendo que ela trabalhava até a meia-noite, pedi que me levasse até a central e consegui conhecê-la. Alta, magra, bonita, balzaquiana, tem dois filhos adolescentes. Uma voz linda! Prometemos nos encontrar um dia, mas as nossas rodas da vida rodaram paralelas e ainda não deu para se encontrarem.

Já deve ter uns cinco anos que isso tudo aconteceu.

Durante esse tempo, muita água rolou em nossa família. Através das mensagens que eu passava para meu filho, ela foi acompanhando, sempre discreta e atenciosa, os vários fatos que aconteceram. Gravidez, nascimento, doenças, promoções, desempregos, alegrias, tristezas, esperanças, brigas e desencontros. E tanta coisa mais!... Sempre falo um pouquinho quando é ela quem atende, fugindo às regras dos atendentes.

Liguei lá outro dia, atendeu uma pessoa que não conheço. Perguntei se poderia falar com ela e a moça transferiu a ligação. Hoje é monitora, já não atende chamadas para mensagens. Ela pode me ouvir mais e contou um pouco de si mesma. Mais uma vez combinamos nos encontrar num fim de semana. Temos muita coisa para trocar. Acho que agora vai ser possível. Em todo caso, para não perder o contato com ela, pedi seu endereço e escrevi-lhe uma carta e continuarei escrevendo, até poder vê-la.

- Central Mobi - Boa noite - Sandra - código, por favor?

- Boa noite, Sandra e muito obrigada.

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 13/05/2008
Código do texto: T988252