Ressurreição e acessórios
Existem muitos motivos para que um homem procure um bom psiquiatra. Alisou os cabelos grisalhos e estava pronto para desabafar seus infortúnios. A sala era quente e uma senhora se apresentou aos demais como mulher de contabilista sem que ninguém lhe desse a mínima. Era um tipo de manhã onde tudo parecia fugir da memória. No fundo aquela espera lembrava uma reunião formalizada para pessoas especiais. O doutor Pires chegaria e começaria a chamar por ordem alfabética os pacientes.
Ontem durante à tarde de folga do doutor Pires tratou de quebrar o pé com a bicicleta das crianças. Retornava cansado numa segunda-feira indigesta. Precisava de férias. O homem de cabelos grisalhos apresentava grande ansiedade. O médico chamou:
- Dona Shiveli queira entrar, por favor.
O homem de cabelo grisalho se chamava Ticiano. Estava por dentro do seu recalcamento, sabia tudo de si mesmo. Quando ganhou dinheiro da apólice sofreu um ataque cardíaco. Típico da exploração do capitalismo. O dinheiro recebido fora quase todo exaurido na sala de operações. A mulher falecera em seguida e ele teve a sorte de enfiar no buraco do peito um marca passo no momento certo. Com o prejuízo e o marca passo começou a sentir indulgência e depois da indulgência o desprezo e logo a perseguição. Temia que a televisão ficasse sabendo dele, como sabem de tudo, até da mulher com a tesoura de cirurgia na barriga. Se isso ocorresse sua vida solitária acabaria num inferno de atenções malquistas. Carregava em seu peito a distinção insuportável e vital. Refletia: “como o seu coração havia morrido e ele continuava?”.
O psiquiatra demorava trancado com a tal Shiveli aumentando o processo da ansiedade. Sequer havia reações nos rostos. O sono agitado da noite demorava cada imagem do dia. Era-lhe duro esquecer a mulher. Amava-a com lágrimas nos olhos infelizes das visitas que fazia a sua memória. Para piorar a faxineira lhe convencera dos recados da morta num acontecimento que ficava a Rua Aquidabã, todas as noites. Por sorte os mortos da Batalha de Aquidabã permaneciam longe da casinha. Casinha entupida de desesperados e carentes emocionais a espera de recurso coletivo para dores individuais. Foi até lá. Ele e o coração de ferro. O tempo de amar havia passado em sua lógica de viúvo. Começou a gostar de reencarnação, idéia milenar. Foi aí que deu início o seu confuso desespero.
- Como desencarnaria se dentro dele havia um pedaço de ferro pulsante? Como morreria se aquilo funcionaria indefinidamente?
Travou por conta da preocupação uma verdadeira Batalha do Riachuelo com sua alma de vaso navegante. Aguardava uma resposta esclarecida do Doutor Pires. Uma réplica que levasse o seu marca passo para o além. Sem nenhum receio de ficar no meio do caminho na hora exata. Ele talvez retornasse mais ilustre como um Floriano Peixoto, mas e o marca passo? O objeto que ele desejava pirâmide, antes que bolachinha, nada dizia além da mecânica inquietação.