Lopes Gama e suas farpas

     Nos anos trinta, do século 19, circulou no Recife O Carapuceiro.
    
Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, um beneditino secularizado, era o seu redator-chefe.
     Muita gente, acredito, não se lembra disso. 
     Para situar melhor os meus leitores, um pouco da vida de frei ou padre Lopes Gama. 
     Ele nasceu no Recife no dia 29 de setembro de 1793.
     Em 1805, ingressou no mosteiro de São Bento de Olinda.
     Em 1807, foi transferido para o mosteiro beneditino de Salvador. Na capital baiana, ele fez o noviciado e  foi ordenado sacerdote.
     Em 1834, voltou para o Recife, e abandonou a Ordem de São Bento. 
     Foi escritor, professor, político e jornalista. Viveu intensamente essas atividades. 
     Morreu na capital pernambucana no dia 9 de dezembro de 1852.
      Embora editado no Nordeste, numa época de meios de comunicação incipientes, O Carapuceiro  fez enorme sucesso em todo o território nacional.
     Tudo por conta da caneta culta e destemida de Lopes Gama, um crítico acerbo dos costumes brasileiros no tempo do Império.
      Os assuntos por ele abordados, em longas e eruditas crônicas, eram considerados  explosivos.  Por este motivo, alcançavam enorme repercussão e muita controvérsia. 
       Quarenta e oito dessas crônicas foram selecionadas e reunidas no livro O Carapuceiro pelo escritor maurício Evaldo Cabral de Mello, irmão do poeta João Cabral.
     Tenham os leitores, a partir dos títulos que lhes foram dados, uma ligeira idéia dos temas tratados no O Carapuceiro pelo seu "cruel" redator:  - 
A Religião, As modas, Os mentirosos, O jogo, Os sem-serimônia, O vandalismo, A má-criação, O que é ser pelintra, O que é ser coqueta, O que é ser bom moço, Os basófios, A ornitomania ou paixão por pássaros, o O luxo nos enterros e exéquias.  
      É evidente que, no pequeno espaço destinado a uma crônica, comentar cada artigo do beneditino-jornalista será, um trabalho estafante, correndo ainda o cronista o risco de cometer falhas irreparáveis. 
     Fique-se, por conseguinte, com, apenas dois dos 48 temas publicados no O Carapuceiro. É muito pouco. Mas fazer o quê?  
       O luxo nos enterros e exéquias -  Nesta crônica, Lopes Gama manifesta-se contrário ao que ele chamou de "a louca vaidade dos funerais".
     Algumas de suas farpas malhando os enterros luxuosos: 
     - "O que significa tanto aparato, tanta riqueza para dar à sepultura um cadáver, a maior parte das vezes já podre, senão vaidade e mais vaidade?"
     - E o que é ele (o homem) depois de morto?  Não é mais homem; nem há em língua algum vocábulo que o caracterize: nos primeiros dias é um objeto horroroso. Ao depois, um montão de ruínas, que ultimamente se reduzem a cinzas."
     - "O mesmo sujeito que não porá dúvida de dar duzentos mil-réis por um mausoléu... para dar realce e pompa ao funeral de seu parente, muitas vezes não terá ânimo de dar uma pataca a
um pobre por alma daquele. E por quê? Porque a esmola não frita, não estronda, não arrebata os olhos."
     - "Deus ama o espírito, ama a pureza, e não aparatos."

      A propósito, o texto completo dessa crônica deveria ser lido em sessão solene do Congresso Nacional, agora, que os "nobres" senhores deputados, afrontando os vivos, votam, despudorados, verba vultosa destinada a financiar seus funerais.

      A Religião -   Lopes Gama não poupava nem mesmo seus colegas de batina. Tratava-os com rigor. Alguns chamou de "frades e padres gamenhos"!
     Como a palavra gamenho hoje é pouco usada, procurei ver  seu verdadeiro significado. Consultei o Houaiss e o Aurélio. Nos dois famosos dicionários não encontrei  a tradução desse vocábulo. 
     Fui, então, ao Dicionário de Sinônimos e Antônimos, de Francisco Fernandes, e lá estava: Gamenho - Peralta, janota, vadio, tunante.
      Sobre os padres gamenhos, escreveu: "Há coisa mais vergonhosa e miserável do que ver no mesmo altar, na celebração dos tremendos mistérios da religião, um clérigo ou um frade bamboleando-se, saracoteando as ancas, requebrando-se, de maneira que um Dominus vobiscum parece que é uma embigada ao povo em festança de lundum?"

     Se Lopes Gama criticou os padres dançarinos é porque, em 1832, ano em que circulou, no O Carapuceiro, a crônica Religião, eles já existiam.
     Portanto, padres requebrando nos altares não é coisa surgida nos séculos 20 e 21. 
     É de se perguntar: o que diria o padre Carapuceiro se entrasse nos templos modernos onde o requebro rola solto?...
    Muitas dessas críticas de costumes feitas pelo beneditino  Lopes Gama podem ser consideradas retrógradas, exageradas, ou saídas da cuca de um padre ranheta.
     Uma coisa, porém, me parece inelutável: alguns defeitos sociais e políticos do século 19, apontados pelo padre Carapuceiro, no Terceiro Milênio, eles permanecem inalterados!
     Melhor seria, claro, que eles não mais existissem: um indicativo do aprimoramento moral da Sociedade. 
     Leiam O Carapuceiro, e verão que não estou exagerando e nem sendo mais um cafona na praça...

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 12/05/2008
Reeditado em 23/01/2009
Código do texto: T986560