"Tinha Uma Pedrada no Meio do Caminho" =Crônica sobre covardia e desumanidade=
Eu ia passando em frente a um pequeno prédio situado a alguns quarteirões de distância de minha casa quando ouvi alguém berrando “Passa fora!!!” em um tom de imensa raiva. Olhei para ver o que acontecia e vi um pobre cão abandonado, esquelético, tremelicante, olhando apavorado para o grandalhão que gritava com ele. Sem saber como agir, o pobre animal apenas olhava para o homem e andava em círculos em volta dele. O sujeito estava ficando apoplético de raiva por não ter sido ainda obedecido e abaixou-se para pegar uma pedra do calçamento. Aí o sangue me subiu à cabeça e quem gritou fui eu:
- Se jogar essa pedra no bicho você tá ferrado, cara.
- E quem é que vai me ferrar, posso saber?
- Eu mesmo. Se atirar a pedra eu ferro com a sua vida. Pra começar eu chamo a polícia...
- Pode chamar. Se essa merda não sair daqui agora mesmo eu mato ele. Juro que mato.
Entrei na frente do cachorro e cruzei os braços.
- Atire a pedra, cara. Vamos. Vamos ver se tem pontaria.
O cretino levantou uma pedra que daria para matar a mim ou ao bicho se pegasse em um de nós. Continuei firme, se bem que com medo de que o cara fosse maluco e mandasse mesmo a pedrada. Encaramos-nos até que ele abaixou a pedra e gritou, ordenando que eu sumisse dali com o animal.
- Você não é ninguém, ô zé-mané, pra me dar ordens. Vou fazer o bichinho sair daqui para segurança dele, mas a coisa não vai ficar assim não. Não vai mesmo.
Chamei o cachorrinho com boas maneiras e ele me acompanhou até a padaria, onde comprei um croquete de carne e servi ao coitadinho. Depois subi até minha casa, fiz a barba, tomei um banho, vesti-me melhor do que antes, e voltei ao prédio onde trabalhava o esquentadinho das pedradas.
- O que é que o senhor quer?
- Não é assim que se pergunta, cara. Você tem que perguntar com quem eu desejo falar.
- Com quem você quer falar?
- Você não. Pra você eu sou senhor. Quero falar com o síndico.
- Posso saber de que se trata?
- Até pode. Vim falar a seu respeito. Contar a ele que você queria dar uma pedrada no cachorro.
- Não vou chamar ninguém não senhor.
- Não precisa. Peguei no um-zero-dois os telefones de alguns dos moradores e vou ligar para um deles pedindo que chame o síndico. Pensei logo na hipótese de você não querer chamá-lo e vim prevenido.
Liguei pelo celular e dei sorte. Ao primeiro toque uma senhora atendeu e poucos minutos depois o síndico vinha ao meu encontro. Relatei a ele a cena da pedrada que não foi dada e o homem ficou espantado:
- Mas que coisa, amigo!! Esse homem começou a trabalhar aqui anteontem. Estava desesperado por falta de emprego e apronta uma dessas...E pelo jeito é um sujeito perigoso, muito esquentado por pouca coisa.
- Ele só não atirou a pedra porque eu pus a mão na cintura como se estivesse armado. Ficou com medo de levar um tiro.
- O senhor tem alguma testemunha?
Eu ia dizer que não quando ouvimos uma voz um tanto quanto distante:
- Tem sim senhor. Eu vi tudo daqui da minha janela. Esse homão ia matar o cachorrinho com uma pedrada se esse senhor não interferisse. Qualquer coisa pode me chamar pelo interfone que eu desço.
- Obrigado, dona Rosa. Acho que não será preciso. Esse funcionário está em experiência ainda e será despedido agora mesmo. Aqui no prédio quase todo mundo tem bicho em casa e ninguém vai querer saber desse sujeito trabalhando aqui.
Pouco depois voltei pra casa, mas confesso que senti pena pelo fato de fazer o apedrejador em potencial perder o emprego.
Alguns dias depois passei com minha cachorrada em frente ao tal prediozinho e vi um novo funcionário lavando a calçada. Perguntei pelo grandalhão só para confirmar se havia sido despedido. Recebida a confirmação, comentei que fora eu a reclamar sobre ele. O funcionário riu e me avisou que ele garantiu que me mataria logo que me encontrasse em qualquer lugar.
- Vai nada. Grandalhão que late não morde. Cara valente não dá pedrada em bicho indefeso.
Umas duas semanas depois eu estava na padaria tomando um café com um velho amigo quando o grandalhão entrou. Ao me ver, veio direto pra cima de mim:
- Ah, filho de uma puta...até que enfim eu te encontro de novo, velho...Agora nós vamos acertar as contas. Perdi o emprego por tua causa, desgraçado, e agora...
Enquanto ele falava eu ia andando de costas e antes que ele percebesse desamarrei minha pastora alemã da grade onde a deixara. Aí quem ficou valente fui eu:
- Vamos lá, filho da puta tamanho família. Vamos. Levanta a pata pra mim, corno manso. Quero ver sua valentia agora, chifrudão de merda.
O cara achou que eu estava blefando, já que minha Lala estava apenas olhando pra ele, e segurou-me pelo ombro com violência. Foi o que bastou para um festival de mordidas nos braços e nas pernas. Ele corria e minha Lalinha, aquele amor de cadela inesquecível, ia mastigando dele o que podia. Correu mais de um quarteirão rua abaixo bem acompanhado por uma cadela treinada na defesa do dono.
Nunca mais vi o sujeito. E agora, morando em Santos, será ainda mais difícil. Tô a salvo, mesmo sem minha saudosa Lala, que morreu de repente no ano passado, para imensa tristeza minha.