Dedicatória a minha mãe avó - Ester Setzer

Pessoal

Hoje vou publicar textos da minha avó. Acho que vcs vão adorar mas antes aqui vai um pouco de história.

Ester Setzer, nasceu em 04 de agosto de 1914 em Rostov, Rússia, uma cidade bucólica como ela mesmo dizia, as margens do Don. Passou uma infância curta no seu país de origem. Mesmo assim passou anos de fome por causa da primeira guerra mundial o que cooperou para seu físico compacto, 1:50m. Quando ela tinha três anos, estorou a revolução russa, que começou em 1917 naqueles 10 dias de outubro, como diria John Reed, mas que na verdade foram anos para se alastrar no pais continental como era a URSS daquela época. Os bolchevics, exercito vermelho, vinha lutando sem trégua contra o exército branco e estavam prestes a entrar em Rostov. O pai de minha avó protagonizou a memória da minha infância mais impressionante. Faltando apenas um dia para o exercito vermelho entrar na cidade, meu bisavô, rico na Rússia Czarista, resolveu fugir para o Brasil. Mas antes disso pegou a cristaleira cheio de cristais Tchecos e quebrou tudo. Para quem alguma vez viu o a delicadeza dos trabalhos tchecos consegue entender como uma cena destas pode marcar a infância de uma pessoa. Imaginem aqueles cristais clamando por mais alguns instantes de vida e caindo sem forma em um último grito agudo ao chão. Sua razão foi simples. Palavras dele: ‘Já que eu não posso te-los ninguém os terá’. Minha avó veio para o Brasil em 1921.
Chegaram pelo porto de Santos e foram se instalar na casa de um amigo em São Paulo. A única riqueza que traziam era um Samovar todo em ouro. São Paulo fervia naquela época. Em 1922 , acontecia a semana de 22. Estudou no colégio Dante Aligueri. Foi ai que aprendeu o italiano.
Em 1930 conheceu meu avô. Em 1932 estourava a revolução constitucionalista e meu avô foi convocado para lutar pelos paulistas. Tenho cartas maravilhosas dos dois. Eram super apaixonados. Foi nesta revolução que surgiu a expressão: Ou mato ou morro. (Fugir para o mato ou para o morro como contava meu avô.)
Depois do fiasco da incursão paulista, eles resolveram se casar. Meu avô tornou-se um médico cardiologista respeitado. Minha avó ficou apoiando sua carreira. Enquanto isso, já se atirava a escrever peças de teatro.
Na época da segunda guerra, minha avó soube da devastação que os alemães fizeram na sua cidade natal. Todos os parentes que ainda estavam na Rússia morreram. Ela contava que Rostov era o berço dos ciganos. Passei a infância ouvindo canções ciganas. Olhos negros sempre me encheu de lágrimas quando ouvia e cheguei a perguntar mas porque olhos negros. Ela dizia. NA rússia a maioria das pessoas tinham olhos claros. Olhos negros eram raros por lá. Os ciganso tinham admiração por eles. Quando Marcelo Mastroianni protagonizou aquele copeiro que vai para Rússia vender cristais chorei muito porque ele realmente passa o espírito do povo russo. Para quem a assitiu Tarkovisky em Nostalgia sente o significado de um povo muito apegado a suas raízes.
A medida que meu avô fazia sucesso minha avó podia comprar seus objetos de desejos preferidos. Livros e discos. Passei a infância ouvindo música clássica. Ela tocava piano apesar de sua pequena mão. Eu adorava ouvir Beethoven e Brahms. Mas o concerto numero um de Tchaikovisky tinha um significado impar para nós dois. Ela tinha a gravação de Van Cliburn tocando naquele famoso concurso. É de uma beleza e força descomunal. A mesma força que se sente no disco de Vladimir Horowitz em Moscou. Minha avó tinha muitas saudades da sua terra natal. Para quem leu o encarte do disco de Horowitz gravado pela Deustche Grammophone, 419 499-2, entende o que é emoção. Ela nunca conseguiu voltar a Rússia pois a abertura chegou depois de ela ter morrido, em 1986.
Na época de repressão militar, Ester resolveu estudar sociologia na USP. Além disso, era secretária do partidão quando já era considerado ilegal. Fez da nossa casa muitas vezes de aparelho para esconder procurados. Meu avô, pobre coitado nem sabia quem ela abrigava em casa. Várias vezes no porão da sua casa ficava o Pasquim que tinha sido proibido de sair naquele dia para ser distribuído clandestinamente na madrugada. Meu avô, o único cara de centro verdadeiramente que conheci, não entendia nada. Eu já era nascido quando, ele professor na Universidade de Medicina da USP, foi cassado pelo glorioso AI5. Meu pai tirou a barba, coisa que nunca tinha feito e se preparou para fugir na calada da noite. Não adiantou. Todo mundo foi pego e foram parar na delegacia. Se meu avô não fosse o médico mais importante da época de cardiologia seria mais um na estatística da repressão militar.
Fui morar com meus avós com apenas cinco anos e ela me ensinou a gostar de livros. Na nossa casa imensa no Pacaembu, cinco pavimentos de casa, mais de 1000 m2 de casa, nos dirigíamos ao escritório com estantes e estantes de livros e fazíamos leitura e ela me introduziu a escrever poesias. Outra relíquia que guardo dela são os cinco volumes de dicionários do Laudelino Freire. Só a letra A é um volume de mais de 400 páginas. Lembro de livros de arte da Skirá com acabamento perfeitos, Danti Aligueri de 1840 com gravuras verdadeiras coladas nas páginas do livro. Gil Vicenti, Fernando Pessoa. Tudo era motivo de sedução.
Eu tive uma infância gloriosa como poucos tiveram chance de ter. Vivia num mundo encantado, como ela também. Foram passagens e passagens maravilhosas que levaria anos para transcrever. Minha avó chegou a escrever um romance, Romance em lá menor, com o pseudônimo de Ester Verga mas não chegou a ser distribuído parece. Esta passagem nunca entendi direito. Mas vamos logo as poesias...