MONOGRAFIA

MONOGRAFIA

Logo na primeira semana do ano letivo de 1972 e ano da graduação no Curso de Letras, a turma recebeu um aviso para comparecer à uma reunião dita importantíssima e decisiva para a realização da formatura. Pensávamos mais na colação de grau, principalmente no baile de gala. A reunião, entretanto, tinha outro objetivo, conforme declarou, séria e com a voz muito forte, a diretora do Departamento, entre as baforadas de cigarro:

“CHAMEI-OS AQUI PARA COMUNICAR-LHES QUE NÃO SE GRADUARÃO EM HIPÓTESE ALGUMA SEM REALIZAREM ANTES O QUE DETERMINA O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. VOCÊS DEVEM ESCOLHER UM TEMA PARA FAZEREM A GRANDE PESQUISA. O TRABALHO DEVERÁ SER ENTREGUE A ESTE DEPARTAMENTO ATÉ O FINAL DO PRIMEIRO SEMESTRE, IM – PRE- TE- RI- VEL- MEN- TE. OS ALUNOS QUE NÃO APRESENTAREM A GRANDE PESQUISA NÃO SERÃO GRADUADOS, NÃO PARTICIPARÃO DA PROGRAMAÇÃO, ENFIM, NÃO RECEBERÃO OS SEUS CERTIFICADOS ATÉ CUMPRIREM A DETERMINAÇÃO MINISTERIAL. TENHO DITO. E AGORA RETORNEM IMEDIATAMENTE ÀS SUAS CLASSES”

A Grande Pesquisa, este era o nome da nossa inocente monografia que podia ser feita em papel pautado e não sabia o que era digitação e nem as famosas normas da ABNT.

Todos os professores serviam como orientadores porque perguntávamos sempre ao primeiro que aparecesse. Assim ficamos cientes de que devíamos usar as aspas quando transcrevêssemos o pensamento dos autores. Vão pesquisar na biblioteca, era o que repetiam os mestres, já enfastiados de tantas dúvidas. E nós íamos passear entre os livros empoeirados, condenar o bibliotecário, um homem santo. Estudante adora martirizar. Copiávamos algum trecho interessante e depois nos perdíamos nos livros de poemas de Lord Byron e nos de Álvares de Azevedo. Às vezes fugíamos para conversar no jardim, ou tomávamos um ônibus e íamos bebericar umas caipirinhas na praia, onde nunca esteve a biblioteca pública. Fazíamos sempre os cálculos para não esquecermos do prazo. A secretária cumpria seu papel, passava nas salas logo no primeiro horário e dizia: ESTÃO ELABORANDO A GRANDE PESQUISA? CUIDADO COM O PRAZO.

Entre nós, um colega excêntrico, daqueles tipos obrigatórios em todas as faculdades. Nasceu num bairro humilde, órfão e criado pela irmã mais velha. Gostava de rir e de contar piadas. Aprendeu sozinho a ler, escrever e falar inglês e alemão sem mestre, com aqueles livros baratos que prometem aprendizagem em trinta dias. Sim, o milagre ocorreu. Passou no vestibular e é um excelente professor ainda em atividade.

Esse nosso colega evitava a biblioteca, entrava e saía a todo instante pela porta principal da faculdade, com um caderno amassado debaixo do braço. A movimentação e a ausência dele aos poucos encontros na biblioteca chamaram a atenção dos outros colegas.

Ele dizia que não nos preocupássemos, que ele daria um jeito, daria tempo, estava fazendo algo em outras bibliotecas, mas ninguém acreditava nas justificativas. A festa sem ele não seria boa. O tempo passava, nada de novo acontecia e a nossa angústia aumentava. Pensávamos de tudo, que o colega não teria dinheiro para a beca, para o anel, para as taxas do certificado. Houve até quem quisesse fazer uma cota junto aos pais fazendeiros e industriais. Mas cada um sabia o pai que tinha e a idéia não foi à frente.

Faltava apenas uma semana, perdíamos a paciência com o excêntrico. E ele prometendo e garantindo. O nervosismo aumentando. Achávamos a Grande Pesquisa uma desgraça. Quanto mais líamos, mais nos convencíamos de que não nos formaríamos naquela exigente instituição de ensino. Desistimos do colega, o nosso problema parecia agora insolúvel. Lá vinha a Secretária: AMANHÃ, IMPRETERIVELMENTE ÀS OITO DA MANHÃ, VOCÊS DEVEM ENTREGAR A GRANDE PESQUISA NA SALA DO DEPARTAMENTO.

Esquecemos a festa, não pensávamos mais nas luzes do baile. A valsa vinha aos ouvidos como uma marcha fúnebre.

Entregamos o trabalho. Ele também. Ele, o excêntrico. Depois de alguns dias de muita ansiedade, esperávamos a banca manifestar-se enquanto, em casa, a família acreditava que estávamos escondendo a verdade sobre nossas avaliações e até temia convidar parentes e amigos, imaginando a vergonha social de receber a notícia da reprovação dos filhos muito inteligentes, competentes e preparados.

O resultado chegou. Marcada a reunião para o dia seguinte, com o objetivo de nos proporcionar mais uma noite de insônia e desespero. Alguns até sonharam com o velho e sisudo Ministro da Educação, outros tiveram pesadelos com uma poderosa secretária do gabinete da Presidência da República. Uma mulher cujo poder nos fazia acreditar que conhecesse nossa vida de fio a pavio e sabia de todos os nossos podres.

O resultado foi um balde de água cristalina com pétalas de rosas perfumadas sobre as nossas cabeças. Passado aquele momento de êxtase com o resultado geral, ouvimos a lista por ordem crescente das notas. Todos sabiam já que a nota menor seria do órfão e até fazíamos cara de tristinhos, sonsos e falsos. Esquecemos de todo o sofrimento anterior e cada um já via a nota 10 passeando na sala.

A Diretora, fumando mais uma vez, sorriu ligeiramente para a turma, algo nunca visto. Cruzou as pernas, deu mais uma tragada e começou a ler o documento oficial que nunca nos deixou olhar.

Começou a leitura solene.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO FAZ SABER A QUEM INTERESSAR QUE ESTÃO DEVIDAMENTE APROVADOS OS ALUNOS DO CURSO DE LETRAS e tal e tal e tal. EM ANEXO A LISTA CLASSIFICATÓRIA

Fulana de tal, 7; Cicrana, 7; Beltrana, 7,5; Fulano, 7,5; Beltrana, 8. E assim foi até a última nota. O colega órfão e excêntrico, 10. Parecia resultado de desfile de escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro: Unidos do Salgueiro: 10; Beija-Flor: 10: Portela: 10; Mangueira: 10; Unidos da Tijuca: 10; Mocidade de Padre Miguel: 10; Imperatriz Leopoldinense: 10.

Havia um erro, não era possível um resultado desses! Uma colega, filha de desembargador, sobrinha de governador, dona de uma bela mansão onde existia uma senhora biblioteca particular, e ela só tirou 8!

No outro dia, retomando os preparativos, não se deixou de perguntar a ele, o campeão, como e quando teria feito a sua Grande Pesquisa. Ele nos concedeu uma coletiva, a turma toda no jardim da faculdade:

Olhe, foi assim, tenho muita preguiça de ler esses livros grossos, quase todos iguais. Além do mais, quando toco neles, passo a semana toda espirrando e com falta de ar. Fiquei desesperado, mas nada disse a vocês. Fui à Biblioteca Pública e o resultado foi o mesmo, crise asmática. Peguei os papéis e comecei a escrever sobre o meu tema com as minhas próprias idéias, concepções e conceitos. Depois de escrever bastante, lembrei de que tinha que incluir o pensamento dos autores reconhecidos. Continuei a escrever fazendo da seguinte forma: produzia o texto e dizia _ começando, intermediando, ou concluindo os parágrafos _ Segundo Holmes Fritz, pesquisador renomado... e passava as minhas próprias palavras para o alemão, colocava aspas, pensava uma data e uma página.

E quem é Holmes Fritz?

Holmes é aquele maluco que andava de bicicleta pelos corredores do colégio Atheneu, aquele que desenhou um caixão de defunto no quadro, uma obra prima feita com giz, e anotou:

NESTA SALA, DE 50 EM 50 MINUTOS, ENTRA UM DEFUNTO NOVO.

Lembram dele? E Fritz é o Dr. Fritz, o que faz cirurgias espirituais.

Todo mundo de queixo caído, apalermado. Depois, um festival de gargalhadas.

Sim, continuando, usei também a língua espanhola. De acordo com os pesquisadores Borges e Castro, “La educación es el único medio de enfrentar las crises sociales...”

E mais um norte-americano. “Education is the greatest problem in Brazil, and because of this, brazilian people will never go ahead…” _ wrote, Benjamin Dallas.

Da Inglaterra citei Susie Candie, que defendia a educação elitista.

Cumpre informar que os professores passaram muito tempo elogiando a profundidade e a pertinência da pesquisa do excêntrico colega.