A ROSA AMARELA

 Sabe aquele friozinho na barriga que às vezes dá quando você está diante de um acontecimento muito esperado? Era o que eu sentia, ainda no hall da sala de espera do aeroporto. Motivo? Minha viagem  para Recife estava prestes a acontecer e de lá, em alguns minutos, eu estaria em Olinda, minha terra natal. 

Isso sempre me acontecia. Cada vez que me aventurava em voltar a minha cidade-mãe, o coração no peito disparava.  Minha memória olfativa e visual me lembrava os cheiros e as cores conhecidos de minha casa.  O cheiro do bolo de fubá quentinho, aquelas tapiocas feitas na hora, o cheiro de queijo de coalho frito  na chapa e o inconfundível cheiro de minha mãe.

Era um cheiro misto de flores, do tipo jasmim,  rosas e lírio do campo.  Mas não era só isso, seu perfume era doce sem ser enjoativo e seus cabelos cheiravam a mel.  Cada vez que eu chegava em casa, a encontrava no jardim; ora molhando, adubando ou podando as plantas. Sempre lhe dizia que ela tinha os dedos verdes, pois bastava tocar numa planta e ela florescia. E as flores? Sempre desabrochavam lindas e atrevidas em seu jardim, e as suas preferidas eram sempre as de cor amarela com as quais, ao me abraçar, sempre oferecia uma a mim.

Aliás, cores eram o que não faltavam em minha mãe e em nossa casa. Olhos e cabelos negros numa face muito corada faziam dela uma espécie de Ninfa do agreste. Pele muito branquinha, não encontrava meios de se bronzear. E o seu sorriso? Dentinhos separados na frente davam-lhe um ar de "moleca", mas o seu sorriso habitual, era aquele que herdou de Mona Lisa. E como ela gostava daquela musa de Da Vinci!...  A ponto de querer que eu me chamasse Gioconda quando eu nasci.  Mas num desses acasos da vida, e em homenagem a alguém muito querida na família, vim a chamar-se Marisa.

Na infância, eu queria ser igualzinha a ela e queria, principalmente, porque ela me parecia uma super heroína daquelas que a gente nem imagina nos contos de fadas, apenas nas Histórias em Quadrinhos.  Minha mãe não era do tipo "princesa ou fada " dos contos de fada. Ela sempre foi do tipo moleca e guerreira. Como foi mãe muito cedo, quase que na adolescência, costumava a levar os filhos para suas aventuras juvenis do tipo mais brejeiro possível. Nos ensinava a subir em árvores junto com ela para pegar frutas, construía nossas pipas e nos ensina a empinar, subia no telhado para apanhar ninhos de passarinhos e nos mostrar, brincava de esconde-esconde conosco, construía fantasias de índios com papel celofane das caixas de biscoito que ganhava, e o que eu mais gostava era quando chegava o Carnaval e ela, meus irmãos e eu, fabricávamos nossas máscaras de papel maché moldadas em argila.

Quando não tínhamos dinheiro para comprar fantasias, ela mesma as confeccionava com lençóis velhos ou tecidos de morins e dizia que estávamos vestidos de "almas". Daí colocávamos nossas máscaras, pegávamos nossas bisnagas de água, e liderados por minha mãe, saíamos em grupo para brincar o carnaval.

À noite, invariavelmente, minha mãe, vinha ao nosso quarto para contar histórias e cantar.  Como ela cantava bem, voz de sereia. Mas, antes, nos contava algumas histórias, sempre muito bem humoradas e nosso sono vinha, normalmente, com o cansaço do riso. Minha mãe foi em minha infância uma autêntica heroína, mas daquele tipo que curtia os filhos e a vida familiar. Com ela eu aprendi a brincar e a ser moleque.

Disciplina? Sim, mas ao modo dela. Quando eu e meus irmãos brigávamos, ela nos colocava os três, sentados, abraçados na enorme cadeira de dentista de meu pai e dali só saíamos depois que fizéssemos as pazes.  Na hora de fazer as lições do colégio ela dizia: "Inventei uma brincadeira nova. Vocês querem saber qual?”. Claro que nos enchíamos de curiosidade, pois suas brincadeiras sempre tinham muita diversão. E daí ela dizia: "Terminem logo os deveres de casa e me encontrem lá no quintal!". 

E nos almoços de domingo, invariavelmente tínhamos aquele rocambole de batatas recheado com carne moída ou frango e mais outras iguarias. Sobremesa? Frutas ou compotas de frutas. Lanche da tarde? Muito leite com bolo ou biscoitos. Jantar: sopa de feijão, macaxeira, inhame, batata doce, carne de sol,   bolo de rolo, queijo de coalho  e tapiocas, hummm...

Minha mãe, como boa aquariana, era muito inventiva e sui gêneris. Acordava muito cedo e nos levava à praia dos Milagres.. Ficávamos lá até 8h da manhã e voltávamos pro café da manhã. Mesa repleta iniciada com um gostoso munguzá. Depois íamos brincar no quintal de casa enquanto ela se ocupava dos afazeres domésticos e eu sabia que ela havia começado a cozinhar quando começava a cantar. Cozinhava cantando e acho que por isso sua comida era tão gostosa.

Tinha uma coisa em especial que eu gostava muito de ver minha mãe fazendo: era quando ela estava se arrumando para sair com meu pai. A adolescente com cara de moleque se transformava numa bela mulher. Eu menina, encantada, acompanhava passo a passo, sua transformação. Primeiro a lingerie que usava. Finíssima.  O sutiã bojudo, a anágua, meias de seda com costura atrás, vestido cintado e justo no quadril e um pouco abaixo dos joelhos, e scarpins,  sempre beges ou gelo pra combinar com qualquer cor dos vestidos. Sim, colar  e brincos de pérolas, anéis, pulseiras e relógio. 

Hora da maquiagem: se pudesse comparar a um recital de ópera, aquele seria o auge da ária, cujo esplendor provocava o êxtase das minhas emoções. Minha mãe começava passando pó-de-arroz e depois rouge. Delineava as sobrancelhas e olhos com lápis preto e finalmente o batom vermelho. Ah! Também acentuava o sinal que tinha acima dos lábios com lápis preto.  Prendia os cabelos num coque alto, jogava laquê e...Pronto! Estava vestida para matar! Belíssima mulher dos anos cinqüenta/sessenta. Linda, lembrava uma dançarina espanhola.

Belas recordações que tenho de minha mãe. Aos quarenta anos voltou a estudar e se formou em Advocacia, fez concurso público e trabalhou até os últimos anos de sua vida, dedicando-se, especialmente, àqueles com necessidades sociais. Foi um exemplo para os filhos, todos os seis.

Desta vez, ao chegar à Olinda, não a encontrei, mas tudo na casa continuava lembrando ela, principalmente o jardim. Procurei pelas rosas amarelas, mas não havia nenhuma, nem mesmo ainda em botão, o que me fez ressentir.

Naquela noite de minha chegada, no entanto, sonhei com ela que me abraçava e, com seu jeito brejeiro dizia: “Filhota, como você está bela. Dê cá um cheiro!”. E eu acordei dizendo: “Mãe, então dê uma flor para mim!”.

Acordei sorrindo e com a certeza de que havia estado com ela, pois a sensação era de total leveza e completude, de quem sabe o que é um carinho de mãe. Porém, o que mais me surpreendeu foi o milagre que nesta manhã se deu. Minha irmã chamou-me às pressas no jardim e disse-me: “Olha só que linda rosa amarela desabrochou! Não sei como ela foi estar aí, se não havia ainda, sequer, um botão nesta roseira!”.

Olhei as outras plantas do jardim, a árvore Acácia, as papoulas, os lírios e os jasmins e todos pareciam sorrirem para mim. Senti uma brisa morna passando pelo meu rosto e o cheiro inconfundível de minha mãe. Parecia estar me beijando.  Tremor pelo corpo, coração em descompasso, suspirei e pensei:

“Obrigada, mãe! Sei que essa rosa é para mim!”

 

 NB: Dedico esta rosa amarela  do jardim de minha mãe à todas as Mães do Recanto pelo DIA DAS MÃES!