Pobre Coitado

Não vou escrever mais nada hoje, nem amanhã, nem depois de amanhã. vou ditar. Escreve aí: Era uma vez um quase-escritor que trabalhava muito, por pouco, e nunca tinha tempo para escrever. O restante de seu pouquíssimo tempo era dedicado à família. Esposa, filhos, compromissos, etc. etc. e etc. Era sua rotina. Principalmente etc. Está escrevendo tudo? Não perdeu nada? Foi assim, sem tempo para escrever, resumiu tudo. Sua vida foi ficando tão resumida e resumiu-se em ir e vir, o que, no seu pensamento lógico, já é um privilégio. Tudo resumido e resolvido. Até resolver que resolveria o problema. Já está no capítulo do problema? Está escrevendo tudo? Ah! o problema. Você achou que a estória não teria problema? Pois é: vida simples, sem maiores ganância (que neste sistema é incomum), sem muitas coisas para serem conquistadas, no seu entender. Conquistar pra quê? Pensava. Já existem tantas conquistas por aí, e sempre o resultado é devastador. Na verdade, não queria conquistar nada. Gostava era de apreciar, contemplativo. Erguia, contrário à devastação, terras e emoções. saiu-se bem no primeiro capítulo, no segundo, vieram os percalços, pequenos, no terceiro, maiores, e no quarto, prevendo o final, uma catástrofe. Por que a vida é assim, perguntava, enquanto ditava. O mundo do homem é generoso e ao mesmo tempo indecifrável. Tantas surpresas. Não é como estava previsto. Como disse Drummond: uma pedra no meio do caminho. Corações de pedra. E que tamanho de pedra. Uma rocha. Se sentia perdido agora, meio esquisito, sabe que pode mudar sua estória mas não consegue. sabe que pode mas não pode. Disse, vou tentar a sorte. Agora que estou sendo cobrado, não tenho como pagar. Como um alquimista, vou transformar metal em ouro, como um ilusionista, vou mudar a realidade. E, num passe de mágica, entrou num mundo de sonhos e pesadelos, enquanto ditava estas palavras, e as frases foram ficando desconexas, e o escrevente foi deturpando tudo, não foi fiel ao criador, alterou o final, modificou a estória. Resumo: sem tempo, perdido, não resolveu o problema, não enfrentou a situação e terminou como um pobre coitado. Não conseguiu nada, nem afeto, nem consideração, nem reconhecimento, nem a prometida recompensa, nada veio, apenas a constatação crua e nua de que o destino, se ele existe, estou fadado a ser um ser sem ser o que realmente queria ser. O tempo, sempre escasso, dedicado, trabalho, família, lhe consumiu, como uma fogueira, apagou.

florencio mendonça
Enviado por florencio mendonça em 09/05/2008
Código do texto: T982363
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.