O VELHO CAMPONÊS

Era um velho camponês forte como um touro. Chamava-se Aristides. Oitenta e um anos de idade, sim, oitenta e um anos de idade bem vividos. Corpo esbelto, de movimentos firmes. A aparência física, apesar da pele curtida de sol não dava nenhuma mostra das oito décadas e um ano vividos. A sua lucidez e o vigor físico levaria qualquer um a dar-lhe no máximo uns cinqüenta e cinco ou até menos. Era incansável: andava de bicicleta, a cavalo, a pé, por longas distâncias nas estradas empoeiradas; trabalhava na roça de sol-a-sol; plantava amendoim, melancia, milho, feijão, hortaliças, cuidava da chácara no fundo do quintal, fabricava rapadura pura e rapadura com amendoim, criava galinhas.

Morava numa cidadezinha chamada Joaquim Felício, no Alto Médio São Francisco, Minas Gerais: a família vivia na cidade, mas ele passava a maior parte do tempo no seu sítio a cinco quilômetros da cidade. Sempre era visto se deslocando da cidade para o sítio, do sítio para a cidade. Para a roça levava víveres, roupa limpa, ferramentas; para a cidade, levava tudo que produzia no sítio para consumo da família ou para vender aos moradores. Era fagueiro, expansivo, estava sempre a conversar com todos que encontrava e sempre que tinha oportunidade falava das estripulias do seu tempo de jovem: as conquistas amorosas, as brigas, as caçadas, as pescarias, as festas.

Na roça, dormia cedo, por volta de sete e meia a oito da noite. Levantava-se antes do sol nascer, fazia o café e pegava no batente. Tinha uma relação cotidiana muito próxima com o sol: começava a trabalhar quando ele surgia e encerrava sua jornada com o ocaso do astro rei, com intervalos apenas para almoço e para a merenda no meio da tarde. Sua vida, apesar dos oitenta e um anos, parecia com o sol ao meio dia: em nada lembrava o ocaso.

Certa manhã, tudo começou como sempre era a rotina diária na vida do velho camponês, exceto por um detalhe: o tempo parecia estar diferente. Sim, havia algo diferente com o tempo. O tempo, como ele entendia era os ares da vista panorâmica que o rodeava. O velho não sabia explicar o que estava diferente e isto o intrigava, pois, ao longo das suas oito décadas e um ano de vida o tempo nunca fora segredo para ele; sabia as horas pela posição do sol, sabia se ia chover ou não pela nublosidade, sabia se faria frio à noite pelas cores das nuvens que surgiam ao pôr-do-sol, mas naquele dia havia algo estranho... não sabia o quê, mas o sol, o mato, a casa, tudo que ele olhava estava diferente e quanto mais ele buscava explicação mais intrigado ficava por não encontrar resposta.

Olhou ao longe, para a paisagem até onde a vista alcançava e julgou que começara a perceber a chave do mistério: o mundo havia encolhido, estava menor. Como é que o mundo poderia encolher? Seria o apocalipse? Involuntariamente resolveu contemplar a paisagem tapando um olho e depois o outro e aí descobriu a tragédia: estava completamente cego do olho esquerdo; não sentia dor alguma ou qualquer sintoma, mas não enxergava nada do olho esquerdo.

Levado pelos filhos, consultou médicos especialistas em Montes Claros, no Norte do Estado, e depois São Paulo; o diagnóstico final foi desolador: o velho estava irremediavelmente cego do olho esquerdo; em linguagem popular, havia sofrido um derrame no olho, provavelmente enquanto dormia. É um mal indolor e talvez por isso seja ainda mais assustador, uma vez que traz a idéia de que pode acontecer sorrateiramente a qualquer um; a morte também é assim – sempre que sabemos que alguém conhecido morreu nos assustamos porque, naquele instante, o nosso inconsciente nos avisa que mais cedo ou mais tarde a nossa vez também chegará.

Cerca de um ano depois, passado o choque de se ver cego, o velho já havia se acostumado à nova situação. Voltara a fazer tudo que fazia antes sem qualquer alteração na sua rotina. A visão monocular não era empecilho. Certa manhã, entretanto, lá estava ele, rachando uma tora de madeira com um machado para usar como lenha no fogão e, de repente, um acidente: a tora, com o impacto do machado, saltou e o atingiu no rosto, justamente no olho direito, o olho bom. Levado às pressas ao médico veio a triste constatação: teria que ser submetido a uma cirurgia para implantação de um cristalino artificial; passaria a ter uma visão muito limitada e ainda assim com o uso de óculos com uma pesada lente. Foi uma prisão para o velho que, tão acostumado a uma vida inquieta e com poucos limites, agora o máximo que podia fazer era algumas caminhadas diárias. Conseguia ir a pé ao sítio, mas não podia trabalhar e mal cuidava das plantas que lá existiam. Ganhou alguns quilos, movimentos lentos e um ar de melancolia. Passado mais um ano as coisas pioraram de vez: o pobre ancião campônio deixava de enxergar definitivamente também do olho direito.

Ele não estava preparado para enfrentar o mundo sem a visão. Eis que a mente de oito décadas e três anos resolve ocupar a lacuna deixada pelos olhos agora inativos: ele começa a imaginar a realidade ao seu redor, recriando-a com base em suas experiências vividas. A realidade recriada mentalmente, por quem não está acostumado a ver o mundo através de outros sentidos que não a visão, dificilmente coincide com o que está sendo presenciado por quem tem uma visão normal, fenômeno vulgarmente conhecido por delírio ou loucura. Altas horas da noite o velho imaginava ser dia, dentro de sua casa na cidade ele se imaginava na roça trabalhando na lavoura ou tangendo animais; imaginava pássaros, répteis, insetos se aproximando dele; seu mundo se tornou ilusório, dependente de antidepressivos para controlar sua ansiedade, de sedativos para dormir e de alguém para auxiliar-lhe na alimentação, higiene pessoal, locomoção, enfim, para viver enquanto a morte não chegava.

Em dois anos tudo mudou na vida do velho camponês de saúde e vigor invejáveis até os oitenta e um anos de existência. Dois anos em relação a oito décadas e um ano é como um repente. Nesses dois anos ele envelheceu três ou quatro décadas; definhou e morreu subitamente numa manhã aos oitenta e três anos, mas aparentava mais.

Diríamos que o velho Aristides deixou inúmeras lições de vida – paradoxalmente até a tragédia que o abateu é uma grande lição para quem fica: é preciso que se viva intensamente os bons momentos da vida porque somos vulneráveis às situações fortuitas muito mais do que se pode imaginar. O amanhã? O amanhã é sempre uma incógnita.