SOU... FRAGMENTOS.
Hoje ao acordar olhei em volta e percebi que, aparentemente, continua tudo igual. Sei, entretanto que só aparentemente, pois como disse Heráclito “tudo flui”, permiti-me ficar mais tempo em frente ao espelho. Queria saudar esta mulher de quarenta e cinco anos que agora é minha hóspede. Olhei-me demorada e atentamente. Procurei encontrar a história de cada traço deixado pelo tempo em meu corpo. São tantos, não dá para lembrar de todas. Tem àqueles que não estão visíveis, porém mais fáceis de ser lembradas. São as marcas deixadas na alma.
Vi as marcas ao redor dos lábios e acredito que seja o sorriso o responsável por elas, orgulhei-me disso. São fragmentos de minha infância. Gosto de sorrir desde sempre. Lembrei da garota levada, das muitas “maldades” que fiz, das mentiras que contei para livrar-me dos castigos de papai e de como mamãe ficava valente porque eu nunca era punida pelas traquinagens, mas papai sempre dizia: ta vendo que a neguinha não ia fazer isso? E ele tinha razão, eu era apenas a “mentora” a execução ficava por conta de meu exército. Creio que o aguçado senso de justiça que tenho hoje é uma forma de me redimir destes delitos, por isso acredito que sempre há esperança.
Da juventude guardo a inquietação, os questionamentos, o amor pelas causas sociais, o desejo de tornar o mundo melhor, e uma grande cicatriz na perna direita, queimadura em cano de moto, uma das piores dores que já senti na vida. Olhando esse filme que passa sem nenhum critério cronológico percebo como nossos sonhos têm a dimensão da realidade que conhecemos. Não lembro de meus sonhos de criança, acho que vivia de uma forma tão intensa que não sobrava tempo para sonhar, eu não sabia que havia vida além de meu mundo, o que sabia vinha através do rádio, mas eu nunca parei para pensar sobre isso, era feliz com o que tinha.
Todos os meus períodos foram permeados de muita leitura. Foi a partir dos livros que comecei a conhecer o mundo e a sonhar. Durante algum tempo eles foram os únicos a me entender. Quando fui morar na cidade refugiei-me neles. Não sabia viver longe de tudo que amava, foram eles que me salvaram. De criança levada à pré-adolescente tímida, recatada. Vivia apenas para minhas leituras. Adorava descobrir o mundo através dos livros. Aos poucos fui me libertando dos muitos demônios que povoavam meus medos e voltei a conviver com as pessoas. Expulsei a timidez e deixei florescer meu lado palhaça. Se durante quase todo o ginásio fugi dos colegas de classe e refugiei-me na timidez, durante o segundo grau fui líder estudantil, lutei pela volta dos grêmios, participei de todos os movimentos políticos e religiosos da época. Fui às ruas pedir Diretas Já e sonhei com um país mais justo.
Ao olhar para trás percebo que meu caminho foi muito diverso. Caminhei por veredas, estradas, auto-estradas, estradas carroçais, cai em crateras, fiz desvios, abri alguns caminhos na marra, encontrei cancelas fechadas, pontes quebradas, mas caminhei e isso faz toda diferença. Estou aqui. Feita de muitas matérias, muitos fragmentos, mas inteira. Perdi pessoas que pensei serem eternas em minha vida, coisas que imaginei que estariam comigo para todo o sempre, mas também ganhei coisas com as quais nunca sonhei, encontrei pessoas que fizeram minha vida mais alegre e feliz.
Orgulho-me de tudo que fiz (menos das mentiras que criei quando criança e das maldades que fazia com meus irmãos). Sei que poderia ter feito mais e melhor, mas minhas escolhas me trouxeram até aqui, portanto sou responsável pelo que sou e pelo que tenho. Tenho certeza que a pessoa que sou hoje é fruto de muitas somas e divisões, de muitos erros e acertos, de lágrimas e sorrisos. Eu poderia ter dinheiro e poder se isso me fascinasse, mas sempre que tive que escolher entre o dinheiro e meus princípios eu fiz a segunda escolha, dizem que sou ingênua, prefiro acreditar que sou coerente e mesmo quando vivi momentos de muitas dificuldades não me arrependi das escolhas feitas. Meu compromisso é com a felicidade, em nome dela eu abro mão de qualquer coisa.
Da série: Mulher Madura!?
06/05/2008.