Monstro
Quantas noites já passei em claro meditando sobre aquilo que poderia ou não ser realizado? Quantas vezes já não me pus a prova de fogo dos artifícios do desejo? E caí em todas elas. Infelizmente posso admitir de forma clara e concisa que não sou um homem digno de nota, nem muito menos utilizado como exemplo de forma agradável. Sou apenas um homem.
Diz-se, de pessoas como eu, que somo covardes, canalhas, inescrupulosos seres de sangue e carne, sem espírito. Como uma confissão abro aqui meu espírito, algo que não tenho, para dizer de forma límpida tudo aquilo que me incomoda, nesses tantos anos de existência.
Lembro como uma tarde clara e taciturna de todos os fatos que me levaram a esse devaneio inconstante. Começou por volta das doze horas, uma dor de cabeça latente e pungente que ameaçava não mais dizer nada além de dor, fazer valer o nome que a deram para que eu fosse quem sou hoje. Caí da cama num lance e atingi meu auge, percebi que entre o inferno e o paraíso não existe mais do que uma breve linha. Sou um monstro.
Corri para a cozinha em passos vacilantes e amenos, toquei o solo frio do cômodo como um maníaco num sanatório. Encontrei rapidamente, em tensos e longos segundos, os comprimidos que procurava. Nunca agradeci tanto por meu tato valer mais do que minha visão turva e distorcida. Algumas amostras da droga caíram no chão, mas aquelas que ficaram na minha mão me ajudaram a sanar as dores, de forma curta e instantânea. Adoro analgésicos, me fazem sentir melhor quando não estou em mim.
Voltei para a cama num lance, logo o sono me acolheu e me tirou da vigília em que rapidamente pereci. Por volta das seis horas da manhã levantei igual a todos os outros dias mas não era mais eu que estava naquela casa, era um outro, da mesma forma que o personagem de Kafka. Olhei para o espelho e não reconheci a imagem que lá se encontrava, era alguém estranho, alienígena. Todos os olhos da manhã se voltavam para meu amargurado e desfigurado rosto. Percebia que algo de bizarro havia acontecido mais rápido que minha mente conseguisse raciocinar. Me tornara um monstro.
O dia de trabalho me revelaram um homem estúpido e inumano, alguém que nada mais era além de um acúmulo de mau humor e energia negativas. Tratei mal a todos que pude, ofendi de forma contundente e profunda, não poderia perdoar nem mais uma mágoa. Sinto por ter que revelar dessa forma, mas me tronei um monstro terrível que não tinha mais amigos ou pessoas a volta, ao dispor de minhas amarguras e tristezas, nas saliências de meu ser apenas havia lodo e qualquer coisa de desgraçado acontecendo. Gradativamente isso tomou meu corpo, meu raciocínio, minha criatura interior conseguiu me devorar, mas do que eu pude resistir.