Uma crônica para Maristela
1. Naquele sábado de inverno feroz, conheci Maristela, uma bela puta. Caminhava eu com alguns amigos de farra pela "zona". Desabava sobre Salvador um violento pé-d´água. Relâmpagos e trovões escandalosos metiam medo até no mais audacioso boêmio.
2. Fazia frio no cabaré da Crêuza. Nele encontrei Maristela. Estava gelado o seu modesto quarto, onde, felizes, ela e eu,terminamos a farra, iniciada à boquinha da noite.
3. Sergipana de sotaque apurado, Maristela era assim quando a descobri, naquele sábado de inverno brabo: estatura mediana; corpinho frágil; pernas torneadas; coxas sem celulite; barriguinha sem estrias; seios fartos e atraentes; nádegas suplicantes. Olhos graúdos, castanhos, lânguidos e ligeiros. Tinha um rostinho de mulher sofrida, apesar de sua pouca idade: 21 anos.
4. Dançava com perfeição e inesgotável dengo. Nos fins de noite, quando o crooner Silvinho cantava o último bolero, ela, exausta, reclinando a cabecinha perfumada no meu ombro, desabafava: - "Oh! Que pena! Quando estou dançando, esqueço o meu passado..." Mas, do seu passado, a rigor, ela nunca me falou. Guardava-o com a irremovível convicção de que ele só a ela interessava.
5. No salão colorido do acanhado cabaré da experiente cafetina Crêuza, escondido em uma rua estreita do Centro Histórico de Salvador, Maristela jurava que gostava de deus e o mundo. Sabia-se que estava no script que recebera da dona do bordeu. Mas, baixinho, ela me dizia: "Não. Não gosto mais de ninguém."
6. Eu a compreendia. As as meretrizes, com o correr do tempo, tornam-se mulheres incrédulas; céticas; revoltadas. Maristela não era diferente de suas companheiras de prostíbulo; por mais que eu desejasse...
7. Ora desiludida, ora magoada, ainda assim ela cumpria, com dignidade e exemplar assiduidade, as "obrigações" que lhe eram impostas pela severa dona do Randevu que a acolhera.
8. Acabo de saber que Maristela morreu...
A notícia somente me chegou depois que suas colegas a haviam enterrado; e como indigente. O caixão, soube, lhe fora doado pela funerária de um galego. Ele a conhecera no tempo em que ela era aplaudida (por todos nós) como a "rainha dos puteiros".
9. "Morta, Maristela ainda esboçava aquele seu sorriso zombeteiro", revelou-me, pelo telefone, um amigo que a levou ao cemitério.
Oh! Sorriso que eu conhecera demais nas minhas madrugadas de gloriosas patuscadas - já tão distantes! -, com ela nos meus braços... Com o passar dos anos, a perdera de vista.
10. Me doeu muito não ter ido nem ao velório nem ao sepultamento da amiga Maristela. Poderia tê-la homenageado recitando, no seu ouvido, estes versos de Cora Coralina:
"Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades.
E carrega a carga pesada
Dos mais torpes sinônimos,
Apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa,
Mulher da Vida
Minha irmã
Pisadas,espezinhadas,ameaçadas,
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito."
11. Daqui a pouco, vou colocar esta crônica por entre os cravos - já ressequidos? - que ainda enfeitam o seu túmulo, uma cova rasa em um cantinho perdido do Cemitério da Quinta dos Lázaros, onde, em Salvador, são enterrados os excluídos. E logo esquecidos...
1. Naquele sábado de inverno feroz, conheci Maristela, uma bela puta. Caminhava eu com alguns amigos de farra pela "zona". Desabava sobre Salvador um violento pé-d´água. Relâmpagos e trovões escandalosos metiam medo até no mais audacioso boêmio.
2. Fazia frio no cabaré da Crêuza. Nele encontrei Maristela. Estava gelado o seu modesto quarto, onde, felizes, ela e eu,terminamos a farra, iniciada à boquinha da noite.
3. Sergipana de sotaque apurado, Maristela era assim quando a descobri, naquele sábado de inverno brabo: estatura mediana; corpinho frágil; pernas torneadas; coxas sem celulite; barriguinha sem estrias; seios fartos e atraentes; nádegas suplicantes. Olhos graúdos, castanhos, lânguidos e ligeiros. Tinha um rostinho de mulher sofrida, apesar de sua pouca idade: 21 anos.
4. Dançava com perfeição e inesgotável dengo. Nos fins de noite, quando o crooner Silvinho cantava o último bolero, ela, exausta, reclinando a cabecinha perfumada no meu ombro, desabafava: - "Oh! Que pena! Quando estou dançando, esqueço o meu passado..." Mas, do seu passado, a rigor, ela nunca me falou. Guardava-o com a irremovível convicção de que ele só a ela interessava.
5. No salão colorido do acanhado cabaré da experiente cafetina Crêuza, escondido em uma rua estreita do Centro Histórico de Salvador, Maristela jurava que gostava de deus e o mundo. Sabia-se que estava no script que recebera da dona do bordeu. Mas, baixinho, ela me dizia: "Não. Não gosto mais de ninguém."
6. Eu a compreendia. As as meretrizes, com o correr do tempo, tornam-se mulheres incrédulas; céticas; revoltadas. Maristela não era diferente de suas companheiras de prostíbulo; por mais que eu desejasse...
7. Ora desiludida, ora magoada, ainda assim ela cumpria, com dignidade e exemplar assiduidade, as "obrigações" que lhe eram impostas pela severa dona do Randevu que a acolhera.
8. Acabo de saber que Maristela morreu...
A notícia somente me chegou depois que suas colegas a haviam enterrado; e como indigente. O caixão, soube, lhe fora doado pela funerária de um galego. Ele a conhecera no tempo em que ela era aplaudida (por todos nós) como a "rainha dos puteiros".
9. "Morta, Maristela ainda esboçava aquele seu sorriso zombeteiro", revelou-me, pelo telefone, um amigo que a levou ao cemitério.
Oh! Sorriso que eu conhecera demais nas minhas madrugadas de gloriosas patuscadas - já tão distantes! -, com ela nos meus braços... Com o passar dos anos, a perdera de vista.
10. Me doeu muito não ter ido nem ao velório nem ao sepultamento da amiga Maristela. Poderia tê-la homenageado recitando, no seu ouvido, estes versos de Cora Coralina:
"Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades.
E carrega a carga pesada
Dos mais torpes sinônimos,
Apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa,
Mulher da Vida
Minha irmã
Pisadas,espezinhadas,ameaçadas,
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito."
11. Daqui a pouco, vou colocar esta crônica por entre os cravos - já ressequidos? - que ainda enfeitam o seu túmulo, uma cova rasa em um cantinho perdido do Cemitério da Quinta dos Lázaros, onde, em Salvador, são enterrados os excluídos. E logo esquecidos...