foto da casa de meus pais

Tecendo a manhã


             Um cantar de galo teceu minha manhã urbana. Anunciou a madrugada sozinho, sem o grito dos companheiros, promovendo-me um despertar nostálgico. Ao cumprir sua natureza trazendo no seu canto felizes lembranças de minha infância, com tantos galos anunciando as manhãs, inundou minha alma de alegria e lembranças de tantos outros sons, cheiros e sabores eternizados em meu coração.
              Lembrei-me do meu pai voltando do curral e ligando o rádio para ouvir música caipira. Lembrei-me do aroma do café e do leite fresco fervendo, espalhando-se pela casa e nos despertando para mais um dia de nossas vidas de moradores da roça. Esses cheiros e sabores e tantos outros de outras tantas "comidas da alma", possuem o poder curativo da saudade de casa quando, nos lugares por onde ando, me deparo com eles.
                 A neblina ainda encobria o horizonte, retardando os raios  solares e o friozinho da manhã nos fazia adiar a saída da cama por mais um tempo. Mas havia a escola, os afazeres, a rotina doméstica aguardando cuidados. Pulávamos da cama ao terceiro chamado do nosso pai.
            Os primeiros cuidados eram com os animais. Nosso pai providenciava a ordenha das vacas, soltava os cavalos que pernoitavam ao lado da casa, dava comida ao cachorro, ao gato. Minha mãe, minhas irmãs e eu nos revezávamos na alimentação das galinhas e das ovelhas.
           Aos poucos o restante da filharada ia acordando. Nossa mãe arrumava alguns que iriam à escola e ia atender aos menores que necessitavam mais de sua atenção e cuidados.
O barulho da casa desperta já se fazia notar. Comiamos o desjejum preparado ora por nosso pai, ora por nossa mãe e seguíamos nosso dia tagarelas, barulhentos, felizes.
           O dia transcorria lento ou rápido dependendo das atividades que faríamos. Havia sempre mangueiras, goiabeiras, pitombeiras, cajueiros e outras frutas, dependo do período, a aguardar nossa visita. Havia sempre um bicho ou outro esperando nosso cuidado e atenção. Havia sempre o rio, ah, o rio, lugar das nossas maiores traquinagens, dos banhos às escondidas denunciados pelo cabelo endurecido da água barrenta e as bochechas rosadas.  
          Nossa vidinha na roça recomeçava com o cantar dos galos e se estendia preguiçosamente até as estrelas surgirem no céu, hora em que nos recolhíamos para cear, dormir e eu, insone desde sempre, ficava a sonhar com meu “mundo maravilhoso tirado do nada”. "Mundo do menino impossível", reinventado, cheio de brincadeiras e personagens tão queridos.
         E assim, um cantar de um galo na minha madrugada urbana, trouxe de volta minha “Macondo” e suas felizes lembranças. Trouxe de volta a saudade e o amor por minhas raízes. Trouxe de volta pedaços de minha vida e de minha alma caipira.

 
*À memória feliz de João Cabral de Melo Neto, que teceu no meu mundo poemas inesquecíveis. Também  fui/ sou daquele mundo lindamente eternizado por Jorge de Lima no seu “Mundo do Menino Impossível”.
 
* À lembrança feliz de minha infância na roça. Sua benção meu pai, sua benção minha mãe! Por mais que voe, no meu coração e na minha alma ainda sou aquela menina da roça, encantada com bicho, planta, gente e livro.