Conversas Medievais de Nosso Século
- Não acredito em Deus por que absurdo...
- Mas eu creio por que absurdo!
Pensava que conversas como essas só aconteceriam na Idade Média, mas discussões medievais acontecem em todos os tempos. Não entenda, o nobre leitor, que me refiro a coisas medievais como coisas inferiores, ingênuas, ultrapassadas; não, jamais, tudo que sai da cachola humana jamais será irrelevante. O único momento que nos tornamos irrelevantes é quando achamos que nossa cachola se tornou inoperante, ou seja, quando deixamos de usar o exercício do pensar e do falar. Quero dizer que a irrelevância está mais ligada a um autocomportamento do que opiniões de terceiros sobre o que pensar e falar. Por mais que vivamos na era do politicamente correto, onde algumas pessoas se auto intitulam porta-vozes da humanidade; nossa relevância estará sempre viva no exercício divino do pensar e falar. Eis quando nos tornamos quase deuses.
Pensar e falar são atos que denunciam nossa relevância. Só pensar é incompleto. Para falar algo relevante tem que primeiro ter sido fruto do bem pensar. O pensamento só existe na realidade mais plena quando exposto, ou seja, quando o sujeito que pensa fala. O pensar não é repetição das falas de outrem, mas algo pessoal, íntimo. O pensamento provem do processamento de outras falas, mas jamais será a fala de outros em si. O pensamento provem da admiração platônica, das questões socráticas e da lógica peripatética. O bem pensar jamais será uma cópia do que se tem pensado pelos profetas politicamente corretos, não, o bem pensar é produto espiritual, exercício divino, por isso é quando somos realmente humanos. O “pensamento” politicamente correto é aquele que abre um manual e consulta o “pensamento” do dia. O bem pensar é ter a liberdade de vasculhar todos os pensamentos que existem e a partir daí produzir um novo pensamento único, pessoal.
Não me refiro aqui à dialética hegeliana, não, o pensamento não é evolução. Não passamos de algo simples para algo complexo. Acredito que o bem pensar seja completo em todo seu exercício. A complexidade não está na idéia produzida, mas no mecanismo que utilizamos para criar as idéias. Em outras palavras, o complexo é o instrumento e não seu produto. E o instrumento está pronto, ou seja, a parte complexa não está sujeita à evolução, nem mesmo o seu produto. Por isso o pensamento é livre, ele retrocede à Idade Média e depois avança até o século XX1. O pensamento pode ultrapassar o tempo em que vivemos e projetar o futuro com o produto que dispõe do presente e do passado. Isso não quer dizer que teremos um futuro mais complexo do que o presente e o passado. Não quer dizer que estamos numa evolução que tem por objetivo alcançar uma meta final. Posso projetar uma conversa onde se discute sobre a predestinação calvinista entre duas pessoas que vivem no ano de 3452. Nem Conte e nem Hegel puderam aprisionar o pensamento no politicamente correto.
- Meu caro, crer num Deus que controla todas ações do universo é tão ridículo como achar que uma formiga carregando suas folhas para dentro do formigueiro pode alterar um dia a paisagem natural daquela região em que ela trabalha.
- Meu caro, quando vejo uma formiga e imagino tudo que foi preciso acontecer para que ela existisse, não consigo deixar de pensar na existência de Deus como a única possibilidade disso tudo ser. Tenho vontade de rir das pessoas que acreditam que tudo é fruto de uma coincidência. Como pensava Camus, o verdadeiro ateu é aquele que se autoliquida, pois absurdo.
- Não penso assim...
- Eu sei, pois ainda lhe sobra um pouquinho de esperança...
- Não, apenas quero viver mesmo sabendo que não há sentido nisso...
- Isso! Isso mesmo! Sem Deus sem sentido, não?
- Não, o sentido é a vida em si mesma.
- Eis uma contradição!
- Onde?
- O sentido ser a vida em si. O pensamento não aceita essa vida em si. Ele exige algo mais, continuidade. É uma exigência! Não aceita a finitude, quer mais.
- E por isso achamos que exista Deus? Não vê que essa continuidade já existe? O homem é finito, mas a humanidade é eterna...
- Sim, isso é observável. Seu engano é crer só naquilo que é observável. O pensamento exige as coisas invisíveis! Tudo que existe em nosso mundo material, primeiro teve que ser construído no invisível.
- Ok, meu caro. Só não acredito que por desejarmos algo isso deva existir.
- Isso serve para mim e para você, não?
- Como?
- Simples: assim como desejo a existência de Deus, você deseja a sua não existência. Esses dois desejos são para que possamos comportar nossas visões de mundo, não?
- Talvez...
Quando o pensamento cansa caímos em gargalhadas. É quando percebemos que o pensamento é apenas passatempo, enquanto esperamos...