O SILÊNCIO DOS MILAGRES
Das cenas crônicas que escrevem crônicas...
Quase dez horas da manhã e eu por ali passava atenta aos pequenos detalhes, a contornar a marginal do rio , pela cidade que amanhecera sob chuva e frio.
Feriado, e eu me encantava com o razoável silêncio, e com o trânsito que fluía a contento, posto que mais parecia um milagre dos céus.
A agitação dos dias comuns tem me cansado muito, e eu na verdade pensava em como existe beleza escondida na correria do dia a dia da minha cidade.
Eu não tinha pressa, e esse... também era mais um milagre.
Pude perceber a pavimentação nova da avenida, as obras de contenção das margens do Rio Tietê, o alto nível da água que corria folgadamente de vazão para o horizonte, e ao seu redor uma flora diversificada que eu vi ser plantada porém mal a vi crescer.
Palmeiras balouçando ao vento, e os amarelos lírios do campo florescendo sob a chuva, que ainda hoje se vestem com a formosura dos reis, sem nada pedirem a ninguém.
Cristo se referiu a eles no Sermão da Montanha, e ali estava a oportunidade da calma que me permitia “olhar os lírios dos campos”, ainda que no chão da grande São Paulo.
Portanto mais um para minha coleção de milagres do dia.
Assim eu pensava quando me deparei com o cenário.
Uma pequena casinha de madeira artesanalmente recém construída sobre uma grama verdinha e sob uma palmeira , albergava o amplo vaivém do seu abdome, que de longe delatava seu sono profundo e relaxante.
Sua tranqüilidade era de quem sonhava com os anjos.
De pelo branco mesclado de marron claro, mostrava olhos amendoados e uma face meiga daquelas que inspiram a verdadeira amizade.
Mas o cenário não acabava ali.
Logo ao seu lado, uma tenda puxada ao relento, de um plástico cor azul, mantera-se firme ao vendaval da noite alta, porém já mostrava sinais de cansaço.
Pingos espessos da chuva dela escapavam para dentro da “moradia” improvisada e eram prontamente absorvidos pelo chão de grama molhada.
Lá dentro um corpo totalmente imerso insinuava sua silhueta sob um ralo cobertor axadrezado e desbotado.
Não tão adiante, um fogareiro apagado mostrava os restos do último jantar; e resquícios do calor duma fogueira agora eram pequenos esqueletos de lenha transformados em cinzas.
Um termômetro no alto indicava os milagrosos dez graus, bem como a boa qualidade do ar na cidade cinza.
Por um instante senti certa culpa pelo conforto do meu automóvel.
Ergui meu coração aos céus e agradeci pelo meu milagre, apenas mais um , entre tantos outros inexplicáveis que o silêncio da cidade me gritou...
Antes de perdê-los pelo retrovisor , senti que não tinham pressa alguma de despertar, porque nunca há pressa...quando não se tem para onde ir...
Ali, o pulso da vida era o mais grandioso dos milagres do meu dia.