Quimeras & Engrenagens - Berenice Heringer

Quando aumenta a coisarada, a gente tem de acabar com as coisas. Quando se pega e vê-se que é porcaria, joga-se fora e lavam-se as mãos...Entretanto, algumas batatinhas teimosas se entranham e inçam como tiririca na grama do jardim. A falibilidade do corpo humano é uma caixa de fósforos a serem riscados um a um, queimados e extintos. Falha, falta, fracasso. Como seres de desejos, estamos sempre batendo na tecla errada, sorteando o número fatídico, caindo numa cacimba traiçoeira.

Tudo por Sexo, é disto que trata o livro do psicólogo evolutivo Geoffrey Miller, professor americano de 42 aninhos, autor de A Mente Seletiva. Tudo que Sigmund Freud descobriu, elaborou e sistematizou no final do séc.XIX e início do XX, esse noveau-riche da psicologia evolutiva desconsiderou. Ele envereda por outra vertente. Se Freud catalogou e esmiuçou as neuroses, o lado confuso e negro da psique humana, Geoffrey Miller aborda a ponte por outro lado e diz que a cultura humana surgiu da necessidade de atrair parceiros sexuais para satisfazer o instinto de reprodução. Mutatis mutandis, é TUDO que SF havia dito antes. Só que os neo-pesquisadores pensam estar descobrindo a roda novamente. Produção em série, hoje, esteiras rolantes, métodos sofisticados, pois estamos na era do glamour. Status, prestígio e poder. Sim! Mas um freudiano que se preza gosta de virar a mesa, derrubar o pau da barraca e olhar o avesso da pedra. Não estamos na era vitoriana, mas é como se...

Os circuitos cerebrais evoluíram, esse homo faber só almeja ser homo ludens, brincar, relaxar e usufruir do máximo de prazer . Mas o lado feio está aí mesmo. Está por trás do espelho, nos conflitos ambivalentes, no fundo do poço. É lá que estão os instintos, o que SF chama de ID, onde se enfurnam as vicissitudes, os vícios suplantando as virtudes, o borrão manchando a pintura clássica, o ruído estridente desafinando a orquestra.

As coisettes são as bonequinhas de luxo made in Tawan. As fiquettes são as peguettes, tão à mão quanto um par de luvas ou um corrimão de escada. As paniquettes são as que sofrem da síndrome do pânico, toque, bipolaridade e disfunções várias. Mas elas teimam em querer ser atrizes, manequins, princesas. Vi uma reportagem de uma moça que teve os quatro membros amputados após uma infecção meningocócica, mas com a idéia fixa de ser modelo.

E as bonecas infláveis por ar mesmo, ou por ufania, vaidade, planos mirabolantes, chamados de idiólatras, aqueles que praticam a idiolatria, a adoração de si mesmos.

Quando se perde a cabeça por abuso de bebida, consumo de ecstase, selinhos de LSD (que os experts chamam de docinho), sexo desenfreado, o mundo continua a girar e as ondas de um desatino ou mesmo de um deslize individual, solitário ou em co-autoria, os efeitos de tais atos espalham-se por todo o universo. Um assassinato impetrado levianamente em dez minutos ( só seiscentos segundos) mobiliza um prédio, um bairro, uma cidade, um país, todos os recantos do planeta Terra e outras galáxias. O que está feito não está por fazer. E a repercussão repercute. O som não se perde. O primeiro giro faz toda a engrenagem se mover. A Quimera, um ser mitológico que expelia fogo pelas ventas e boca, com um corpo misto de leão, cabra e dragão, era horripilante. Mesmo assim, fascinante e fantástico. Os desejos, sonhos e façanhas são quimeras, mas são também um fogo, que apesar de ter a virtude de arder sem se ver, como no soneto de Camões, reflete-se nas placas tectônicas, derrete geleiras, causa tsunamis e destruições. O ato solitário se espraia e se insinua em camadas intracelulares e contamina pais, filhos e o resto dos habitantes do Planeta...

Vila Velha, 29 de abril de 2008.

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 02/05/2008
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