Oi, Mãe!

      1. Minha mãe é morta. Sem perder a lucidez, Maria Luiza viveu, com galhardia e dignidade, exatamente noventa e seis anos. 
     2. Era uma mulher de poucos estudos, mas de uma inteligência invejável. Tinha uma envolvente palestra e inspssirada redação.
     3. Foi uma bordadeira de mão cheia. Pedalando uma velha máquina Sínger, ela ajudou meu pai, durante anos, na compra do pirão nosso de cada dia.
     4. Pariu doze vezes! Os quatro primeiros filhotes morreram, dias depois de nascidos. Dos oito que vieram depois, sou o mais velho.  Ela teve toda esta cambada de filhos sem ocupar, sequer por um segundo, um leito de maternidade. 
     5. Os doze chegaram ao mundo, entre 1930 e 1946, pelas mãos de venerandas parteiras,  incansáveis operárias do amor, tostadas pelo sol inclemente do sertão do Ceará. 
     6.  Fazia regularmente o exame pré-natal que, naquele tempo, não tinha esse nome;  os médicos que a atendiam durante a gravidez davam-lhe sempre nota dez. Essa história ela repetia pros filhos, deixando transparecer o sorriso de uma heroína. 
     7. Cada menino que nascia, era uma festa na minha casa. E, acreditem, mais jovem e mais bela minha mãe ficava. Não fosse um câncer que lhe mutilou, parcialmente, uma de suas mamas, e ela teria envelhecido com os seios impecáveis, quase túrgidos.
     8. Vou contar como era o "resguardo" de minha mãe, depois de cada parto.  Não estranhem a palavra "resguardo".  Naquele tempo, no sertão - e lá se vão mais de setent´anos - a mulher paria ( ou como se diz hoje dava à luz um bebê) e ficava um mês sem sair de casa: isso era o resguardo.  Minha mãe cumpria fielmente este ritual. A ele não renunciava nem para ir à igreja matriz "ver a Virgem", devota que era de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
     9. Para o "resguardo", meu pai, sertanejo diligente e precavido, povoava o quintal de minha casa com patos e galinhas. A canja da parturiente, seu grande amor, não podia faltar. 
     10. A dispensa da casa tinha queijo de coalho, requeijão,  e manteiga da terra que, adicionada ao pirão, feito com o caldo do chupa-molho, tornava-o mais gostoso. 
     11. O leite servido à minha mãe era puro: do peito da vaca direto para seu copo de alumínio, depois de uma fervurinha.  Podia também ser leite de cabra. Quando havia necessidade, o leite de jumenta, dito medicinal, passava a fazer parte do cardápio do recém-nascido.
     12. As fruteiras de porcelana tinham, o tempo todo, mangas, bananas, goiabas, abacaxi e o inigualável caju do Ceará. 
     13. As verduras, sem agrotóxico, eram colhidas no pequeno pomar que minha mãe, com mãos cuidadosas, aguava todas as manhãs e antes do sol se pôr.

      14. O tempo foi passando e apareceram minhas primeiras doenças: febres inesperadas (algumas  inexplicáveis), dores de garganta e de dente, coqueluche, diarreias, catapora, sarampo e caxumba; só não tive varíola.  Para cada doença minha mãe tinha um remedinho caseiro. Chá disso e daquilo e outras meizinhas que curavam...  Mas se houvesse necessidade, ela chegava com o insuportável óleo de ricino, com a intragável Emulsão de Scott, e até com uma injeçãozinha, que doía mais nela do que em mim.
      15. Quando cheguei à adolescência, suas preocupações redobraram. Me lembro que ela derramou copiosas lágrimas quando me viu, idos de 1947, tomando o trem, rumo ao seminário. E quando podia, pegava o transporte e ia me ver. 
      16. Deixei o seminário e fui enfrentar o batente em Fortaleza. Do sertão, ela acompanhava meus passos, torcendo pela minha vitória. E até arranjou o meu primeiro emprego, com um parente rico na capital. Para encurtar a distância, mudou-se, com meu pai e a meninada, para a Fortaleza. Enfrentou dias duros...
     17. No final de 1957, o destino  arrastou-me para a Bahia. Passado algum tempo, trouxe-a com o Velho, para Salvador. Dias difíceis...
     18. Mesmo morando perto de mim, era seu o primeiro telefonema que eu recebia todas as manhãs. Satisfazia-se  ao me ouvir dizer: "Oi, mãe, tá tudo bem".
      19. Esteve, a velha, presente na minha vida, até seu último suspiro na manhã do dia 21 de fevereiro de 2003, poucas horas após termos batido um animado papo. 
     20. Morreu trinta e dois anos depois da partida de meu pai, seu companheiro por mais de quarenta anos, sem interrupções.
     21. No "Dias das mães", não irei colocar flores no seu túmulo. Ao ver-me chegando com rosas nos braços, ela pode chorar... Não devo interromper o seu sono. Vou deixá-la sossegada naquele pedacinho de chão do Jardim da Saudade, seu dormitório definitivo.  Sei, que esta crônica que escrevi para ela, a fará feliz...
 
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 01/05/2008
Reeditado em 21/10/2019
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