Casar, constituir família
CASAR, CONSTITUIR FAMÍLIA
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 30.04.2008)
Até por refletir sobre seu próprio estado civil, Manoel Osório comentava outro dia a respeito daquilo que se costuma chamar de "a sagrada instituição da família":
- Na verdade, o problema do casamento já foi, de certa maneira, equacionado nesta última passagem de século. Ele simplesmente deixou de ser indissolúvel perante a Lei e "até que a morte nos separe" perante Deus. Isto facilita um bocado uma série de coisas. Se a coisa não está dando certo, vai cada um para o seu lado e estamos conversados. O problema ainda são os efeitos colaterais: filhos e dinheiro, quando os há. Ninguém gosta de se separar de dinheiro nem consegue se divorciar de filhos.
Neste momento, Marco V. intervém e confessa o seu interesse crescente pelo casamento, sobre o qual pensa até em publicar um livro de ficção.
- Nada a ver, claro, com o romance de Nelson Rodrigues, de título, exatamente, "O Casamento". Cogito partir de uma pesquisa histórica. Aliás, a própria Igreja Católica, Apostólica, Romana só aceitou o casamento aí pelo século XIII. Até então, ela considerava a perda da virgindade, mesmo sob os véus matrimoniais, uma mácula comprometedora da mulher, um pecado a manchá-la irremediavelmente, impedindo-a de gozar as benesses da santificação. Por isso, somente se alçavam à condição da santidade as donzelas virgens e as freiras mártires, também virgens, por suposição. Confrontada com a irrefreável perpetuação da espécie e o necessário abastecimento de fiéis, a Igreja deu um jeito muito seu e o casamento, por um passe de mágica, ou um lance de milagre, virou sacramento da religião católica.
Manoel Osório concorda com o amigo, lembrando que, mais uma vez colocando-se contra a corrente, a Igreja agora não aceita de forma alguma que a sociedade conjugal se possa romper, qualquer que seja o motivo para o rompimento:
- Prega o convívio forçado de duas pessoas que, algumas vezes, já terão conseguido criar um pequeno inferno particular em vida. Mas o problema que persiste é o dos filhos que, embora possam ser educados em um ambiente de dissolução abundante da família dita tradicional, são constrangidos a mudar de casa, de irmãos e de "pais" com crescente freqüência e, não raro, mais de uma vez para cada pai ou mãe biológicos. O que se tem, num extremo, é que os novos laços conjugais podem levar um pai a jogar pela janela do sexto andar sua filha de cinco anos gerada no casamento anterior. No outro extremo, a debilidade da aliança matrimonial "permanente" inspira um pai de 59 anos a encarcerar no porão da casa por 24 anos a filha de 18, com quem se "divertia" desde os 11, e nela fazer sete filhos, três dos quais mantidos com a mãe sem jamais receberem qualquer forma de educação nem verem a luz do sol, além de dar sumiço, pelo incinerador do prédio, no corpo de um filho-neto morto ao nascer.
A opinião de Marco V. é que filhos sejam um projeto especial que não pode estar ao alcance de qualquer um, na base do "querer é poder":
- Deveria ser necessário, para fazê-los, obter uma autorização especial, assim como se precisam de licenças complicadas para criar animais exóticos em casa. Mais cedo ou mais tarde pode surgir inesperadamente um filho oculto, bastardo, que vai brigar com estardalhaço pela herança paterna, como no caso do espólio do "venerável" baiano Antônio Carlos Magalhães. Ou, o que é muito pior, filhos casuais, que vão saindo assim sem querer, acabam caindo mesmo é na rua, desamparados, sem escola, sem sol e, enfim, sem família.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Movimentos Automáticos", novela)