Comeria o Dobro
Autor : Luiz Roberto Felipe Aguiar matric. nº 00993 – UNILUS –
Curso de Relações Internacionais - Disciplina : Língua Portuguesa
4º Bimestre : “Crônicas e Contos” Título : “ Comeria o dobro ! “
Éramos três.Eu, Guto e o Ney.
Sonhávamos em um dia sermos ricos e comer o que e quando quiséssemos.
Os "bicos" que fazíamos na vendinha do Sr. Quinzinho em troca de doces e chicletes de figurinhas não eram suficientes para satisfazer verdadeiros sacos sem fundo como nós. Vendíamos no ferro velho do “Portuga” conhecido como Velho Mathias, várias garrafas, fio descascado e papelão que ganhávamos da vizinhança em troca de alguns favores. Todo o dinheiro suado era gasto em gulodices.
A barriga estufada e os dentes amarelados e levemente podres eram reflexos de má nutrição e o alto consumo de frituras e guloseimas.
Apenas na quarta-feira, era dia de comer algo nutritivo. No fim da feira, no caminho de volta da escola, comíamos maçã sem lavar mesmo, já que os pés descalços era quem nos garantiam as verminoses e também os anticorpos necessários para não ficarmos doente.
Logo após a hora do almoço na lanchonete, aguardávamos a vinda de D.Alvina que passava em nossa rua vendendo cocada e tapioca em uma cesta de vime. Nos tempos de calor, ela carregava também uma caixa de isopor cheia de "chup-chup" pra refrescar a clientela.
Depois das peladas no campinho, era lei irmos com outros amigos na adega do Sr. Clóvis. Prontamente era agitada uma “vaquinha” com moedas de um e de outro, que resultavam em algumas garrafas de tubaína, que passavam de boca em boca, sem precisar de copos. Formalidade pra quê?
Lá pelas quatro horas da tarde, Sr. Léo, um amigo pasteleiro que fazia ponto lá pras bandas do cais, vinha empurrando seu carrinho, atravessava toda a Avenida Maior. Ajudávamos a empurrar o seu veículo de trabalho até a garagem do meu vizinho. Ficávamos os três rodeando o carrinho, feito vira-latas famintos, até aquela boa alma nos dar um ou dois pastéis ”defuntamente frios “ e alguns cascorões ( retalhos de massa frita ) para repartirmos “milimétricamente” em três partes.
Ao cair da noite, escutávamos a buzina do tio Dito, que tinha um triciclo que alem de ser adaptado pra vender aqueles deliciosos pães de creme, sonhos e croissants de massa folhada, era equipado com rádio AM/FM e toca fitas.Todo mundo da rua adorava o som daquelas músicas que seguramente funcionavam como clarins angelicais que embalavam cada mordida nos sonhos e croissants que nos transportavam brevemente aos céus.
E assim era nossa ciranda diária de comilança. Começava no pão doce do café da manhã, seguia pela merenda da escola com dupla repetição, passava pelos sanduíches e refrigerantes do meio dia, e acabava no final da noite, com o famoso churrasquinho de gato do Nêgo Wado, assado numa lata grande cortada ao meio e cheia de brasa, que era vendido no ponto final da linha 7.
__ Piuííííííí , Piuííííííííí . Só de escutar o som do vapor daquele pequeno triciclo azul desbotado que mais parecia um minúsculo foguete, nossas lombrigas se atiçavam. Se não comêssemos paçoquinha e amendoim torradinho antes de ir pra casa, o dia não estava completo.
Comíamos o dia todo na rua. Em casa a comida não faltava, mas era de pouca diversidade e dávamos preferência que nossos irmãos mais novos comessem. E pra falar a verdade, é bem mais gostoso comer besteira na rua, né?
Aproveitávamos em sua total plenitude, o rotineiro ritual hiper-calórico sem qualquer sentimento de culpa. Já que palavras como: " diets, lights, lipoaspiração, gordura saturada, gordura trans, obesidade, hipertensão arterial, AVC, colesterol, diabetes e etc e etc " , ainda não faziam parte de nosso vocabulário.
Atualmente me encontro aqui, mais velho, rico, com cândidos dentes imperceptivelmente artificiais, leve sobrepeso, stress e pressão alta.
Seguindo ordens médicas, agora me deleito com uma dieta regrada, comendo como um passarinho enjaulado.
Juro que se soubesse que quanto mais ricos nós fossemos quando adultos, menos comeríamos. Eu certamente, quando criança, comeria o dobro!