Autocontrole

Fernando conferiu de sua janela o movimento na rua.Apesar do tempo chuvoso,as calçadas fervilhavam de gente.Decidiu,finalmente,que era a hora de fazer o que vinha adiando há duas semanas.Vestiu o casaco,tomou um copo d'água,pegou sua carteira e conferiu,pelo olho mágico,se não havia ninguém suspeito lá fora.Depois abriu a porta e saiu.

Enquanto caminhava pelo corredor,reparou no péssimo estado de conservação do prédio:Pintura descascando,infiltrações aqui e ali,cheiro de mofo...certamente,pensou ele,tudo causado por sucessivas má administrações do condomínio.

Apertou o botão do elevador e esperou.Tal qual o resto do prédio,a cabina móvel também precisava de uma reforma geral.A porta pantográfica abriu-se,Fernando entrou e apertou o botão que trazia o número um desenhado.Durante a descida,mais precisamente entre o quarto e o terceiro andares,o elevador parou.Preocupado,Fernando sentiu o coração bater mais rápido.Para seu alívio,instantes depois ouviu o barulho do mecanismo de cabos sendo acionado,e tudo voltou ao normal.

Ao sair do elevador,foi questionado pelo porteiro:

__Doutor Fernando,o elevador parou não foi?

__Foi rápido,nem deu para notar!!__Respondeu,tentando disfarçar o nervosismo.

__Eu já alertei o síndico!ele disse que colocará o tema na pauta da próxima reunião de condomínio!

__Está certo...... eu vou na rua um instante!se meu cliente chegar antes de mim e não vir o recado que coloquei na porta,por favor diga a ele que eu já volto,tá?

__Pode deixar doutor!

Fernando saiu rapidamente do prédio e ganhou a calçada.Não gostava de esticar muito o papo com o porteiro,pois conhecia o tamanho da língua do funcionário.O homem era boa pessoa,mas tinha um defeito terrível:tudo que ouvia passava a ser de domínio público segundos depois!

Caminhando,sentiu-se incomodado pelo barulho da rádio local,que tinha um repertório de três ou quatro músicas somente,dando-lhe a impressão de que estava repetindo o mesmo dia sempre!sentiu frio e resolveu fechar o casaco.Parou em frente ao semáforo,pois tinha que atravessar a rua.Esperou o sinal fechar e começou a andar.Quando estava exatamente no meio do percurso,um barulho de batida o assustou.Ao virar-se para trás,viu um fusca bem antigo enfiado na traseira de um vectra novinho!O motorista do carro novo saiu e começou a insultar,aos berros,o causador do acidente.Fernando acelerou os passos.Não gostava de presenciar violência;verbal ou física!

O outro lado da rua estava mais cheio!Fernando irritou-se com a lentidão das pessoas,e com a dificuldade que aquilo causava para sua locomoção.De repente,um vulto branco avançou no seu pé direito!Assustado,pulou para o lado contrário,afastando-se da ameaça e esbarrando numa mulher bem vestida,de uns trinta e cinco anos mais ou menos.Os dois quase caíram!Tentou explicar a situação,e recebeu de volta o típico olhar feminino de reprovação,após o qual a "madame" seguiu seu caminho sem olhar para trás!Reequilibrou-se,e viu que a provável "ameaça" não passava de um poodle branco que passeava com a dona,uma senhora de cabelos curtos e grisalhos.Esperou por alguns segundos um pedido de desculpas(que não veio),e mandou,mentalmente,a "tia" para o inferno!!

Estressado com o pequeno incidente,Fernando ficou ainda mais nervoso quando viu,logo à frente,um caminhão recolhendo o entulho de uma obra feita pela prefeitura.Teria que passar apertado entre o veículo e as barraquinhas de camelôs que infestavam as calçadas do bairro.Enquanto transitava pelo pequeno espaço deixado na calçada para quem não quisesse correr o risco de ser atropelado,Fernando lembrou de várias coisas que tinha que fazer:deixar o carro na oficina para revisão,colocar aquela carta cujo prazo de postagem estava terminando no correio,ligar para aquele amigo que fazia aniversário,passar no super mercado,retornar logo para sua sala antes que seu cliente chegasse.......todas aquelas lembranças,misturadas aos gritos dos ambulantes apregoando as qualidades de suas mercadorias,colocaram Fernando em estado de alerta!Simultaneamente,uma onda de ansiedade tomou conta de seu corpo,e ele sentiu-se como um aparelho eletrônico programado para a tensão de 110,ligado numa tomada de 220!

Se estivesse em sua residência ou no escritório,ficaria deitado e imóvel pelo tempo que fosse necessário até a crise passar,mas como não era este o caso,fez o que costumava fazer naquelas ocasiões:empertigou-se o máximo que pode e foi em frente,passo a passo,como um autômato,lutando para não perder o autocontrole e explodir.

A visão do letreiro luminoso da farmácia o animou,estava perto de cumprir seu objetivo.Entrou na botica e foi direto ao balcão.Abriu o casaco e tirou do bolso da camisa uma receita de remédio em duas vias.Entregou-a para o atendente.O rapaz tentou ler o que estava escrito mas não conseguiu.Chamou,então,a farmacêutica responsável e deu a ela o papel.Após alguns instantes,a moça decifrou a letra e indicou o nome do fármaco ao subordinado.Depois de preencher os dados necessários para a compra e receber a cestinha contendo o medicamento,Fernando foi alertado pela farmacêutica,que disse:

__Desta vez eu aceitei a receita,mas você fala para o seu médico melhorar a letra!Eu quase tive de adivinhar o nome do remédio!

Fernando agradeceu,trêmulo,e foi rápido para a fila pagar.Ao chegar no caixa deparou-se com dez pessoas na sua frente.Rezando para a fila andar rápido,ficou ali, segurando a cesta.Seu pé direito não parava de bater no chão.A maioria das pessoas pagou com cartão,o que atrasou consideravelmente a velocidade do atendimento.Fernando já estava a ponto de largar tudo e sair correndo quando sua vez chegou!Entregou a cesta na caixa,pagou em dinheiro,recebeu de volta o fármaco e saiu.Por sorte o sinal em frente estava fechado,o que possibilitou uma travessia rápida da rua.Ofegante,Fernando colocou a mão direita por dentro da camisa,e tentou ouvir se as batidas de seu coração estavam diminuindo.Não chegou a nenhuma conclusão!

Percorreu os metros restantes até seu prédio rezando para não encontrar nenhum conhecido.Não queria que o vissem daquele jeito;elétrico!Ficou feliz ao ter seu desejo atendido.Entrando no seu prédio,foi alertado pelo porteiro de que seu cliente estava esperando-o na porta de seu escritório.Pegou o elevador,e aproveitou os segundos da "viagem" para ajeitar o cabelo e a camisa,olhando-se no grande espelho interno da cabina.Encontrou seu cliente apreciando o movimento da rua pela janela do corredor,exatamente como ele fizera minutos antes,de dentro da sua sala.Acenou para o homem,que disse sorrindo:

__Como é que vai o meu advogado preferido?

__Melhor do que eu mereço seu Abdon,melhor do que eu mereço!!

Abriu a porta e os dois entraram.Fernando pediu para o cliente esperar um pouco na ante-sala enquanto ele dava um telefonema.Fechou a porta do escritório e encheu um copo d'água pela metade.Pegou,então,a sacola da farmácia,tirou o remédio de dentro,abriu o frasco,e pingou dez gotas do fármaco na água.Mexeu bem com uma colher,e de uma só vez ingeriu a substância que o ajudava a manter seu equilíbrio.Tirou o casaco,abriu a porta e chamou o cliente.Agora estava em território conhecido!agora estava tudo bem!!

arqueiro
Enviado por arqueiro em 28/04/2008
Reeditado em 20/01/2013
Código do texto: T965111
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