O cobrador
- Eu tenho medo...
- Medo? Medo de quê, homem?
- Medo da decolagem. - sussurrou Miguel, ao ouvido da moça baiana sentada na poltrona a seu lado.
- Não se "avexe", não, que não vai acontecer nada, ouviu, meu rei? Aliás, se você tem medo de avião, por que não viaja de ônibus?
- A viagem não é turística, é de negócios.
- Não faz diferença. Você podia escolher passagem de ônibus, é até mais barata!
- E eu lá tenho direito de escolha naquela empresa? Se eu ainda fosse o Gabriel... O chefe só fala nele. É Gabriel para cá, Gabriel para lá... "Por que você não é igual ao Gabriel?" - disse, imitando a voz do chefe.
Silêncio. O avião começou a decolar e Miguel, em seu terno azul e gravata amarela, abraçou, angustiado, sua mala.
- E qual é a empresa em que o senhor trabalha?
- O nome é muito comum: Paraíso.
- Qual? A loja de roupas ou sandálias?
- Viu como é comum?
- Vocês fazem o que lá?
- O meu departamento é aluguel. Aposto que todo mundo nesse vôo ja alugou alguma coisa na Paraíso. É uma multinacional. A maior delas.
- Eu não aluguei.
- Você que pensa. O esquema é tão grande que atua em todo o mundo.
- Nossa! - falou, incrédula.
- E põe "Nossa" nisso! Temos o chefe supremo, dois gerentes e um esquema de distribuição enorme. Sem falar nos departamentos... São muitos! Seguro de proteção ao aluguel, departamento que trabalha junto ao meu, departamento de histórico, que tem toda a história do aluguel, e também departamento de pedidos. O lema desse departamento é: "Realizamos pedidos e fazemos até milagre em prol do freguês".
Ela riu. Ele riu.
- Deve ser bem legal trabalhar na Paraíso.
- Não é. Temos contrato vitalício, demora séculos para ser promovido.
- Séculos... Sei... Há quanto tempo o senhor está lá?
- Quase dois mil e cinqüenta anos.
Ela gargalhou.
- O senhor é tão engraçado. Deveria ser comediante.
- É sério!
Ela parou de rir. Estava com medo de ofendê-lo.
- E o que o senhor fará lá em Salvador?
- O de sempre: cobrar aluguel. Mas não é em Salvador.
- O senhor vai pegar ônibus para onde? Porto Seguro? Eu posso levá-lo até a rodoviária se o senhor quiser.
- Não, obrigado. Esse vôo não vai descer. Não do jeito que eu gostaria.
- O que o senhor está dizendo? Isso é só uma turbulência.
- Não é, não. E meu negócio não é lá embaixo; eu tenho de tratá-lo com a senhora.
- O senhor está me assustando...
- Bem, eu sei que é difícil de entender. Olha que eu ja fiz isso um milhão de vezes e ninguém reagiu bem. A coisa que nós alugamos, sabe?...
- Sei... - falou, assustada.
- Bem, nós alugamos vidas e a sua eu tenho que tomar de volta agora.
Ela riu.
- É sério! Eu sou cobrador de almas.
Ela gargalhou.
- Senhora, eu estou tentando ser gentil. Eu tive um dia muito ruim, colhi três almas no Vidigal, duas no Iraque e uma no Havaí. Eu podia estar lá na praia agora, mas eu tinha mais uma alma para colher: a de uma infeliz que não acredita em nada do que eu falo!
- O senhor está falando sério?
- E você ainda pergunta?! Eu devo ter jogado pedra na cruz do filho da chefia!Gerente, o que eu fiz para o senhor para merecer isso? - perguntou ele, olhando para cima - Depois vocês me perguntam por que o Gabriel consegue as coisas mais rápido que nós, Eu estou nesse ramo há mais tempo que ele! Eu ensinei Gabriel a envias mensagens de nascimento e, enquanto ele fica com toda a pompa e glória eu estou aqui!
- Calma, senhor... Já que é meu destino, irei aceitá-lo.
- Graças à chefia!
O homem já estava prestes a abrir a mala, quando seu celular tocou.
- Alô - disse ele.
- Bom-dia, Miguel.
- Bom-dia, chefia! Tenho uma boa notícia: além de conseguir mais uma alma, estabeleci um tempo recorde!
- É exatamente sobre essa alma que quero falar...
- Eu fui promovido, Senhor?
- Não, filho. Você colheu a alma errada.