Espionagem

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De repente bateu uma vontade de escrever. Sem computador à mão, fui à cata de uma folha em branco. Busquei uma antiga pasta onde meu pai, professor, sempre guardava diversas folhas de papel ofício para eventuais soluções de problemas matemáticos ou para a elaboração de apostilas – ele odiava computador!

É. Na casa dos meus pais, dois professores aposentados, não conseguia encontrar uma única folha virgem para deflorar meu desejo instintivo de procriar palavras que se multiplicariam ao se somarem, todas, individualmente.

Encontrei uma revista. Muitas propagandas de produtos de beleza... A casa dos meus pais já não era a mesma e os livros, antes abundantes, estavam esquecidos, guardados numa estante improvisada recentemente na garagem. Abri uma das prateleiras e logo a brisa deu mostras do descaso, trazendo ao crivo das minhas alérgicas narinas, o incômodo do mofo, do ácaro e do desdém.

Formigas eram as guardiãs dos exemplares mais expostos. Não sei se elas os comiam – sou péssimo em Biologia –, mas certamente havia alguma relação entre eles, algo talvez simbiótico, numa quase perfeita troca entre o vivo e o não vivo que, magicamente cria mundos férteis em curiosas mentes.

Ao chão uma aranha imensa parecia limitar-me o caminho. Hesitei. Fechei a porta de alumínio e, mansamente, temendo um ataque das formigas e/ou da solitária caranguejeira, pus-me a procurar uma folha dentro da outra porta da estante – não precisava ser novinha, branca e com cheiro de nova, não. Agora serviria qualquer celulóide onde o poder do atrito me permitisse o defloramento da enxurrada dos desejos que exorbitavam dentro de mim, implorando a socialização universal do verbo, da palavra escrita.

Estava meio atordoado. Era a casa dos meus pais, sim. A mesma onde nasci e cresci. Agora, entretanto, eu era apenas um visitante ilustre, recém chegado de viagem e precisando, enquanto todos dormiam, escrever.

Retornei a sala. Novas incursões e nada da folha de papel. Optei pelo sistema moderno da auto-ajuda e revirei as páginas de um dos livros trazidos na viagem, numa já quase desesperada tentativa de achar o que fosse que me permitisse escrever. Achei! Dentro do livro, lá estava ela, uma já usada folha, estampando uma medíocre nota de uma das minhas recentes avaliações da faculdade.

Organizei-me. Fiz divisões na folha para aproveitar os espaços e me pus a despejar os impulsos da fertilidade. O que nasceria?

Desviei-me da intenção inicial. Não queria me deter na ausência de desnudos papéis que guardam impressões coloridas da vida e da realidade concreta ou fantasiosa de seus criadores. Buscava, na singeleza de um filho que cresceu e precisou voar com as próprias asas, lamentar o ar sombrio e melancólico que tomou conta da casa dos meus pais...

Quanta saudade dos livros que enfeitavam as estantes – os reclamos da minha mãe, sempre zelosa, serviam de tempero para as leituras escondidas dos livros das inúmeras enciclopédias. Quantas descobertas! Quantos desbravamentos... Sopro de vida e de liberdade, transitando no inesgotável imaginário humano.

O espaço finda e a folha, ainda, parece recalcitrar. Num diálogo frívolo, ela me olha nos olhos vermelhos e cansados e me pergunta:

– Havia tanta luxúria em você antes de me encontrar. Agora você me tem, usou-me e me sinto, diga-se de passagem, muito mal usada, largada antes do ápice...

Envergonhado, amasso a folha de papel, jogo-a ao lixo, e resolvo dormir.

E agora, relendo aqui com você, num espaço público, tudo o que fora posto durante minha solidão, estou deveras exposto a críticas e a gargalhas de pouco-caso.

Tenho certeza de que fui indevidamente revelado e meu estado de timidez me torna um ser calado, observativo e pleno.

Nijair Araújo Pinto

Fortaleza-CE, 25 de abril de 2008.

03h45min