O Aquário

“As tiras tiranas entravam o entorno...”.

A ociosidade, o calor e a escura cor dos tecidos, unidos à aliteração grotesca e inesperada do verso, que saltou espontaneamente em um entediante fim de tarde, talvez fossem as únicas palavras que conseguira atar para desafogar o que há muito o sufocava.

Lembrou-se com perfeição os odores do momento em que a alvenaria era assediada pela viril broca de aço, exalando uma confortável nota de poeira e satisfação. A sala, localizada na face mais abençoada pelo sol, possuía não mais que algumas largas passadas em seu interior. Três imensas janelas, sem qualquer proteção além dos vidros, anunciavam humanitária vista para o mundo. Carros, pedestres, cachorros, compromissos, vento, liberdade...

Piso, paredes, teto e iluminação eram brancos. Chegou a cogitar a hipótese de personalizá-la com as próprias mãos; Lata, tinta, cor e um sábado sem ressaca.

Nostálgico, recordou como gostava do Sol. Perdeu as contas das inúmeras vezes em que dormira de bruços, entre gemidos e palavrões, por conta do excesso da energia divina que incidira sobre sua pele clara, ao longo de incontáveis feriados à beira da piscina. Nunca pensara que seu grande amigo, em termos poéticos, viria a cravar um punhal em seu peito. No começo, sentira-se privilegiado por ter, manhãs e tardes, tão fiel escudeiro. O clímax da confusão entre amigos tão íntimos deu-se na parte da tarde. Enquanto um insistia em trabalhar, ignorando friamente os sentimentos do parceiro, o outro, quase que de pirraça, se fazia notar. Certa vez, um deles apelou, desesperado, para imensas caixas de papelão apoiadas sobre a estante, quase que como uma secção de favela, para brincar de mudinho com o exibido colega Sol.

Clicava o mouse, e seus ombros fritavam. Esmiuçava números na tela, e sua vista ofuscava. Já havia tomado sua decisão. O muro de Berlim passaria despercebido em meio a tamanho marco histórico que estaria por vir. Um neo Muro surgiria, separando liberdade de obrigação.

Os cliques dos encaixes que abraçavam-se entre si, eram música para seus ouvidos. Um leve gargalhar se fez ouvir.

Ordem de serviço assinada, despediu-se do instalador que apoiava, em seu beiço, despreocupado com a diplomacia e educação de que seu trabalho não exigia, um cigarro amassado e fedorento.

Sala vazia. O suave deslizar, a sincronia simétrica dos lados, e a excitante sensação de triunfo, faziam-no delirar calado.

“As tiras tiranas entravam o entorno...”.

Entre o último faixo luminoso, espiou seu ex-companheiro, provavelmente taurino, possessivo. Bem diferente de sua livre e aquariana alma. Orgulhoso, finalizou o deslizar horizontal como quem ganha, aos doze anos de idade, uma partida de xadrez do avô experiente.

Tempo... Que cura ou recalca...

Hoje, em meio a terapias virtuais, que vão desde músicas melancólicas a vídeos toscos na Internet, nota...

Certo dia fora um pássaro em uma gaiola... Uma gaiola com vista para a vida, sob os revigorantes raios de seu porto seguro. A solidão era compartilhada...

Hoje, não passa de um peixe fora d’água, enclausurado em seu monótono e abafado aquário. Encapado por filetes de algodão azul marinho, esmerosamente interligados.

- Afinal de contas, porque mandei colocar essas malditas persianas?

Danilo M. Benites

Primeira semana de abril de 2008