ANTÔNIO VELOSO
Casado com Dona Rosilda, Antônio Veloso conheceu as multifaces da vida, primeiro porque nasceu na Lama Preta, nascer na Lama Preta não significa que tenha nascido na sujeira, mas na fatura. Lama Preta era uma propriedade se seus avós, terra preta de primeiríssima qualidade, situada no município de Juramento, em Minas Gerais e depois, porque conheceu a vida de metrópoles, viajando de caminhão pelo Norte, Nordeste e Sul do Pais, ele extraiu de tudo isso a essência, o primor que a vida de abastado lhe ofereceu, mas conheceu também o amargor de muitas batalhas perdidas, fracassos, prejuízos nos negócios e falência empresarial como produtor rural, comerciante, caminhoneiro e industrial.
Foi criado na fazenda Mangai, uma vasta propriedade de seu pai, onde pastavam mais de oitocentas cabeças de gado, entre mamando e caducando. Não se dedicou aos estudos, embora seu pai tenha alugado uma casa em Montes Claros, preferiu cuidar de uma mercearia na Rua Pedro Montes Claros. Ali vendia frutas, miudezas e também a famosa cachaça de Minas, principalmente, no varejo. No primeiro dia em que abriu as portas de seu estabelecimento, visto que este fora comprado de segunda mão, já contava com razoável freguesia,então, entrou o primeiro freguês para tomar uma pinga, antes porém, descascou uma laranja para tira-gosto.
-Amigo, me dê uma pinga da boa.
Sempre muito brincalhão Antônio disse que daboa não tinha, mas gostara do nome como marca de cachaça. Ia sugerir ao pai que fabricasse pinga com a marca Daboa, assim, quando um freguês quisesse uma dose da boa, ele venderia a cachaça de sua própria fabricação.
Apontando para as garrafas na prateleira, mostrou as diversas marcas de bebida que vendia. O freguês escolheu uma delas, tomou uma dose, cuspiu no pé do balcão e foi saindo sem pagar.
- Ei moço! não vai pagar a conta?
- Pode tomar no assento! – disse o freguês.
Antônio sentou a mão no pé do ouvido do primeiro cliente que atendeu. O homem queria apenas que o comerciante anotasse a despesa em alguma caderneta destinada a esse fim, pois era freguês de comprar fiado desde quando a venda pertencia a outro dono. Desgostoso com a clientela, vendeu a bodega e comprou um caminhão.
Durante o tempo que foi dono de caminhão conheceu Rosilda e se casou com ela. Nos primeiro anos de casado, viajava pouco, não porque lhe faltassem fretes, mas porque precisava aproveitar melhor a vida de casado. Casou novo, com 23 anos e seu maior medo era de não ter filhos por causa da doença sofrida quando criança, segundo ele, podia não ser caxumba, mas se fosse, o povo dizia que quem teve caxumba não teria filhos, porque a doença afetava as partes genitais do homem, não foi seu caso, pois teve um número razoavelmente grande, três filhas mulheres e cinco homens.
Posteriormente, dono de uma fabrica de sabão, possuiu muitos bens materiais mas perdeu tudo, de modo que na velhice não lhe restavam muitos recursos, ainda assim, se gabava com o primo Dirceu: “ Eu sou mais rico do que você. Eu tenho três genros e você não tem nenhum.” Realmente, era muito amigo dos genros. Seus segredos e suas histórias, contava para um deles, com o qual se sentia mais à vontade para conversar. Para este, revelava os segredos de sua vida, até mesmo os mais bem guardados e escondidos dos próprios filhos. Sua atividade industrial não foi longa, porque teve um acidente gravíssimo com ácidos utilizados na fábrica que o deixaram prostrado por dois anos, o suficiente para consumir as reservas financeiras geradas por seu árduo trabalho. Ele guardava com orgulho as cicatrizes nos braços, pernas e nas costas provocadas pelo ácido que caiu sobre seu corpo, quase o levando à morte. Na época, recusou aposentar-se, porque não admitia a condição de ser inválido para o trabalho. Muito engenhoso em tudo que fazia, na velhice, passou a viver de pequenos negócios como comprar e vender veículos, enfim, tudo que abrisse a possibilidade de ganhar algum dinheiro ele comprava para revender.
Ainda não tinha sessenta anos de idade e seus genros o chamavam de Véi. Não por desprezo, mas para manter certo respeito por causa da diferença de idade entre sogro e genros. Esse distanciamento, no entanto, ele não aceitava, queria mesmo gozar do tratamento de amigos, sem distanciamento, “Corta essa! Senhor é de engenho” - dizia ele. Decerto, foi uma convivência entre amigos e mais do que isso, pois tinha os genros como filhos. Eles eram seus companheiros de truco, cerveja no boteco e pescaria.
Um pouco desastrado depois de tomar umas biritas, não raras vezes nas pescarias, caia do barco em lagoas infestadas de piranhas, mas nunca foi abocanhado por elas. Estava sempre pronto, bastava chamar, vamos pescar Véi? A primeira resposta era: “Vamos” depois é que perguntava, “aonde”?
A pescaria no rio Urucuia, sem dúvida, marcou uma bela temporada de lazer e entretenimento em sua vida, mal se atravessou o rio São Francisco, e a visão de um bando de emas selvagens na capoeira, causou a impressão de se estar em um safári na África, mas ninguém deu um tiro, sequer, pois a expedição não era de caça, mas, pesca, para aliviar as tensões nervosas causadas pela correria da vida na cidade. Trazer peixe, na verdade, ninguém trouxe, o que se pescou foi apenas o suficiente para o consumo durante os dias que durou a expedição.
Com redes de dormir armadas nas galhas de oiticica, a feijoada borbulhando numa panela de barro e um grande estoque de cervejas conservadas em isopor, muitos pescadores nem jogaram seus anzóis na água e tiveram que comprar peixes no mercado de São Romão, para não chegar em casa de mãos vazias.
Antônio dizia que depois de sua morte, queria ser lembrado pelas façanhas, os momentos alegres que passou na vida e a alegria que propiciou às pessoas de seu convívio e assim o fez, tanto que jamais se recusava ao um convite para sair. Bastava se convida-lo.
- Vamos pescar, Véi?
- Aonde?
-Na barragem da COPASA.
- Uái, num tá proibido!?
- Está, mas deixaremos o carro na casa de tio Gentil, dali prá barragem, é um pulo. Vamos levando uma caixa de foguetes, se os guardas aparecerem, combinaremos com Tutu para soltar os fogos.
Logo nos primeiros anos em que a barragem fora construída, a pesca de anzol era liberada e o foi por uns cinco ou mais anos, até que pescadores gananciosos soltaram bombas na água para matar peixes em grande quantidade, com a desastrosa mortalidade provocada pelo homem, poucos peixes boiavam e eram recolhidos, enquanto, imenso cardumes afundavam, apodrecendo a água destinada ao consumo humano, a partir de então, a pesca de qualquer modalidade passou a ser proibida, vigiada e perseguida pelos guardas da Companhia de Saneamento de Minas Gerais, COPASA.
A pesca predatória provocou também a escassez dos cardumes, tornando difícil fisgar um peixe, mesmo que fosse uma pequena traíra ou bagre..
A visita a tio Gentil era mais um pretexto para deixar o carro no pátio da fazenda que ficava a menos de um quilômetro da parte mais rasa da represa, contudo, restava convencer o primo Tutu a soltar os foguetes, se por acaso os guardas da COPAS aparecem por lá..
- Tutu, essa caixa fogos é prá você soltar, se os guardas aparecerem por aqui.
- Tu bem, pode deixar comigo.
Com Tutu era fácil combinar essas coisas, pois soltar foguete na roça, quebra além do silêncio, a monotonia de quem passa semanas e semanas sem ver um vivente sequer, a não ser os moradores da própria casa e Tutu ficava praticamente só com seu pai, que já beirava a difícil marca dos cem anos. Difícil também era remover da cabeça de um dos genros a vontade de amanhecer o dia na beira da água.
- Vamos Fulano! Estamos aqui há mais de cinco horas e não pegamos nada.
- Espere aí, deu uma puxada...tá correndo...êpa!, escapou.
Não havia outro jeito senão deixá-lo sozinho. Quando se sentisse só, haveria de retornar, pois corria um boato de que havia onça por ali.
Depois da meia noite, Tutu ainda acordado, segurava a caixa de foguetes na mão, talvez até torcendo para aparecer um guarda, assim, poderia deleitar-se com o estrondo dos fogos.
- Solte um foguete, Tutu – disse o genro mais velho.
- Não, Fulano falou que só soltasse se aparecesse algum guarda da COPSA.
- Pode soltar.
Tutu abriu ansiosamente a caixa, puxou o primeiro foguete que conseguiu pegar pelo rabo. Riscou o fósforo, ateou fogo. Chiiii pum! pum! pum! Três tiros. Minutos depois, só se ouvi o barulho no mato, parecia mais um estouro de boiada, era o pescador que ficara na barragem, correndo e arrastando a tralha de pescar. Chegou com um palmo de língua de fora. Um tanto despontado por não ver nenhum guarda, deduziu ser armação dos companheiros de pescaria, para assustá-lo.
- Eu sabia que era invenção de vocês. Eu só vim porque os peixes não estavam mais beliscando a isca.
Depois que o Véi partiu para o lar definitivo, não se falou mais em pescaria, até porque, tio Gentil, ao completar cem anos, foi morar no céu com Antônio Veloso e não se teve também mais notícias de Tutu, o vigia dos vigias.
...
Adalberto Antônio de Lima
24.04.2008