QUARTA-FEIRA:...nada ficou no lugar...
Choveu e a janela do meu quarto ficou aberta enquanto dormia na sala. A ventania jogou papéis para todos os lados, poesias embaralharam-se a contas a pagar e cédulas de dinheiro que não valem mais, e sei lá de onde diabo sairam estas notas. A única solução foi uma faxina. Depois de organizar mais ou menos a loucura toda, olho sobre o guarda roupa e vejo o que seria a parte de cima de uma caixa de tamanho médio, lembrei da palavra pandora, e ao abrir vi que era apenas uma caixa vermelha de memórias. Alguns CDs lá dentro, ADRIANA CALCANHOTO, MARISA MONTE, DJAVAN e escolho algum deles aleatoriamente pra tocar. Alguns livros também, DRUMMOND e JOYCE proseando com UBALDO. A dedicatória no verso da capa de um deles me deixa as lembranças tão vivas que é como se fosse o dia em que lacrei tudo aquilo. Continuo retirando os objetos e vem um perfume com cheiro de um ano que morreu faz um bom tempo. Um agasalho bacana que coloco pra evitar o friozinho que começou a fazer. alguns pares de meias. Um chaveiro com as chaves que não joguei por baixo da porta quando fui embora pela última vez, talvez porque não soubesse que jamais voltaria àquela entrada. Alguns trabalhos da faculdade, anotações em latim. Duas taças, resolvo retirar o vazio de uma delas com vinho. Fotografias onde aparecem muitas pessoas, incuindo eu. Coloco uma delas ao lado do meu rosto e vou ao espelho ver se há tanta diferença entre dois períodos tão distintos. O que vejo me deixa preocupado. Encontro ingressos não utilizados de uma peça de teatro. Um livreto da MAFALDA. Cartas. Ao abrir uma delas e reconhecer minha caligrafia, lembro que nada daquilo é meu, devolvo cada detalhe da nostalgia ao seu devido lugar, com exceção as taças, que agora ocupam lugar destacado na estante, pois nunca se sabe quando será preciso usá-las outra vez. Volta a ventar, melhor fechar bem a janela.
"...eu quero entregar suas mentiras
eu vou invadir sua alma
queria falar sua língua..." ADRIANA CALCANHOTO