A outra

Se Clinton traiu Hillary ( mas não foi sexo!) e o governador de Nova York foi desleal a seus princípios moralistas, certamente chegaria a vez dEla. As evidências, exuberantes, multiplicaram-se após a estada na praia, só as filhas e Ela. Na volta, percebeu algo errado no olhar reticente do marido - enquanto mulheres são pontuais nos momentos de crise, homens se enchem de reticências. O alarme interno deveria ter disparado quando Ela encontrou pistas na cama de casal. Mas assim são as mulheres: portadoras de sexto sentido acutíssimo, ainda que os sinais saltem aos olhos, elas preferem fazer vista grossa.

Perguntou, como quem não quer nada, quem dormira na cama deles durante Sua ausência. Com olhar inocente, ele apontou para Luna, a boxer da família. Ela e a outra se estranhavam há muito, numa competição tácita pelo papel de prima-dona. Ela nada tinha contra a boxer, exceto a devoção a Seu marido e a indisfarçável implicância com Ela. Pular em cima do Seu uniforme branco com as patas sujas; destruir diariamente o jornal jogado na garagem; rosnar quando A via abraçada ao marido; fugir para a rua quando Ela abria o portão da garagem eram rotina nos três anos de coabitação. Ela sempre levou na esportiva. Assim são as mulheres: aprenderam com Oscar Wilde ( e suas avós) que a vida é importante demais para ser levada a ferro, fogo e ressentimentos.

Luna, a outra, é irascível e enfrenta até o companheiro. Quando os cães brigam e o marido percebe-A por perto, não perde a chance de consolar Zack: “Liga não, amigão. Elas são todas iguais.” Ela poderia se irar por ser comparada com uma cachorra, mas mulheres têm natureza pacífica e obstinada em fazer do lar uma faixa de Gaza.

Um dia Ela vacilou: num momento de descontrole, queixou-se de Luna ao marido. Ele ouviu pacientemente a ladainha e, previsivelmente, tomou as dores da cachorra: “Se você me desse metade da atenção que Luna me dá, eu seria um homem realizado” ( para algumas mulheres, só lobotomia resolve!).

Ela calou, escandalizada. Convive-se vinte anos com alguém, faz-se das tripas coração para ser esteio emocional; equilibra-se na corda bamba para conciliar os múltiplos papéis de mulher, mãe, profissional, esposa e de repente descobre-se que tudo que o outro desejava era uma cadela que lhe lambesse o rosto e saltitasse ao fim do dia.

Enfiou o rabo entre as pernas: em alguma coisa muito importante Ela falhara para ser comparada desfavoravelmente a uma boxer briguenta. Assim são as mulheres: andam de mãos dadas com a culpa, em dívida permanente com o Universo. Combativa, Ela tenta se acalmar: tem seus méritos, ora bolas! Se a outra não fala demais, Ela não rosna nem late. A outra aceita usar coleira, mas ninguém precisa comprar ração e trocar a água dEla. Ela não dá aquela lambida afogada em saliva, mas faz várias outras coisas que, garante, a outra não faz.

Ela esmerou na atenção, caprichou no bom trato, rosnou, abanou rabinho. Dois meses depois perguntou, meio assim na brincadeira: “E aí? Superei a Luna?” O silêncio pesado foi resposta eloquente e doeu fundo, fundo... Assim são as mulheres: perigosamente vingativas - quando as alternativas de harmonia se esgotam, que fique claro.

Dizem que a separação, litigiosa, abriu precedência e deu trabalho pra cachorro. E que ele hoje sente muita falta dEla... especialmente nos dias de vacina e tosa.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 22/04/2008
Reeditado em 22/04/2008
Código do texto: T957518
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