PRONTUÁRIO
Tempo silencioso, apesar de barulhos estarrecedores invadirem o espaço. Trovões, relâmpagos, raios. Entre vagas lembranças, espaços indefinidos, linhas da vida mal desenhadas, mal resolvidas, entre um momento e outro, um homem, pode ser eu, observa seu tempo e seu lugar, e, dividido, subtraido, somado e multiplicado, noves fora nada, divagando entre o céu e o inferno, sangra uma gota de orgulho e chora, como um bebê sem a mãe.
Assim mesmo, entre preces e reconsiderações acerca de infinitas possibilidades, de pensar e repensar a escuridão de seus olhos, o homem, pode ser eu, planeja invadir, desesperadamente, todos os lugares possíveis, tudo o que puder salvar para os momentos difíceis de sua jornada.
É assim mesmo, que a terra gira ao redor do sol, que gira ao redor do mundo. É assim mesmo, o homem, pode ser eu, dando voltas ao redor de si mesmo, entre tempestades em copo d'água, entre acentos, crases, frases, fases e crises, é que pensa ser o descobridor dos sete mares e adjacências e, furioso por por não ter o controle total da situação desanda para a charlatanice, imitando o macaco de auditório, mas no fundo é carente, sente falta ainda de dar belas, gostosas e gulosas mamadas no seio da mãe.
Enquanto caminha, o homem, pode ser eu, lentamente um golpe o surpreende e o leva para muito além de sua vontade, mas seu desejo era apenas o de galgar alguns degraus da almejada escada da fama e do sucesso e abocanhar alguns zeros a mais na sua conta bancária, e o final ele já conhecia de outras vezes e outros fracassos e não conseguia mais pensar e pensava que havia terminado tudo mas estava apenas começando, para seu desespero.
Seu diário, que não era mais segredo para ninguém, transformou-se num grande pesadelo, e repensou, se a vida dá apenas pequenas migalhas para saciar a fome, enquanto outros se fartam de manjares, nada vale a pena, espiar pode, mas não havia ninguém por perto para lhe escutar.
E o mundo desabou, confundiu a pequena percepção do ser evasivo no qual se transformou, seu barco afundou, dentro de uma lógica que somente funcionava com a louca interferência de anos de adestramento para simular a fuga da realidade, os sonhos, todos, evaporaram.
Somente o que foi revelado no prontuário médico não deu ao certo para entender a verdade sobre a insanidade que tomou conta do personagem. De um nervosismo-sintomático-sistemático-depressivo-estressante-ambulante e que desandou para uma doença degenerativa celular que o atormentava o dia todo e a noite toda, e a semana toda e o mês todo e chegou a um ano todo, o deixou completamente maluco e simplesmente achava que era comum/normal, pois apenas queria vencer na vida, vender suas idéias e tudo o mais que conseguisse. Achou que superaria tais percalços e que continuaria a viver e que passaria um final de ano como outro qualquer e no próximo ano as coisas seriam diferentes e que nada o faria desistir de sua ambição normal e humana e cheia de dentes e parafusos e cirurgias e avanços da medicina e do progresso da ciência, pensou, é verdade, que nunca morreria.
Mas a realidade, dura, para ele, veio mais dura ainda e o consumiu mais rápido do que a moderna medicina prenunciou e a morte veio certeira, resumida na certidão de óbito: falência múltipla dos órgãos. A família, enlutada, chorou e acabou como toda estória de família: ninguém é insubstituível.