Mentira
A contemplar este meu pequeno mundo estou. Contemplação que não me é difícil nem fácil, não é cara nem barata, é, simplesmente.
Um mendigo me parou na rua, eu indo pro trabalho:
- Um trocado, por favor.
- Não tenho. Menti.
Porque menti, não sei. Vou tentar explicar. Pressa não era, pois não estava atrasado. Talvez, a desilusão com os sistemas humanos, que fabricam tantos mendigos, tantas pessoas como eu, que mendigam migalhas de sentimentos, de prazeres, de atenção, de amor.
O que mais me marcou nesta situação foi o descaso com que a sociedade trata estes seres, indigentes, miseráveis, pessoas que estão marcadas com o símbolo - na testa - da desgraça, do esquecimento, do sofrimento.
Horas depois, só, com os meus pensamentos, fiquei imaginando, sonhando soluções: pesquisar, procurar o passado destas pessoas, buscar suas famílias, suas origens, reuni-las, torná-las novamente a base da sociedade. É um sonho?
Transformar esta gente sofrida, doente, em pessoas capazes de levantar, erguer a cabeça, criar uma alternativa de vida, ir em busca de dignidade, é um sonho?
Seria até um sonho possível, se a sociedade não estivesse como eu, desesperançada, com os olhos marejados, cansado de assistir a este espetáculo grotesco. A vida nos leva por caminhos indecifráveis e depois, como se nada houvesse acontecido, abrem-se as cortinas e vemos todos os atores, a montagem, o cenário, a encena~ção. Não passo de um espectador.
Neste meu pequeno mundo, vejo o universo se desintegrar, desmoronar sob meus pés. O homem é o mais perverso dos seres. Eu sou um desses. Eu que aceito ser manipulado, que aceito as imposições, sofro. Sou covarde, porque poderia levantar e gritar e não aceitar. Eu, que entrego de mão beijada a minha força ao sistema, me vendo por um preço tão baixo, por quase nada, por tão pouca coisa.
Este mendido, - eu não sou melhor que ele - é o que a sociedade produz, com sua covardia. Ele é o ser humano que não frequenta teatros, nem os bares da moda, nem cinema, nem shopping, nem nada, só a rua. Ele é a indiferença. Ele é o que melhor representa esta sociedade. Todos correm dele. Todos tomam ele como exemplo: se eu não ganhar muito dinheiro, vou ficar como ele; se eu não produzir mais, vou ficar como ele; se eu não servir ao capital, vou ficar como ele.
Vou parar, e dar alguns trocados ao mendigo. Vou parar, e beijar seus pés, lavar seu rosto. Estes atos vão me redimir de minha covardia? De que adianta eu me penalizar, se o mundo está cego? Este mendigo é apenas mais um, entre milhões que habitam as ruas deste nosso planeta.
De que adianta estes meus pensamentos se não tenho coragem de parar e, pelo menos, dar uns trocados para ele. Eu minto e continuo, indiferente. Esta é minha maior miséria, não a dele, acomodado, acostumei-me a ver tantos mendigando migalhas pelas ruas, sob as marquises. A miséria não é dele, e sim do sistema que, para manter seu luxo, sua ostentação, tem que fabricar miseráveis, os trastes, os contrários.
Este é o meu mundo. Mundo que eu finjo não ver. Mundo do homem. Do bicho homem, animal feroz, sedento de poder, que explora, que suga, deforma o mundo.
É este mundo que precisa ser transformado para acabar com a indiferença. É este homem que precisa ser transformado para acabar com as diferenças. É este o mundo dos sonhos, onde não existam mendigos, nem pessoas como eu, que não enxergam, que mentem e se escondem na mentira.