E EU, PERSONAGEM... TAMBÉM !

Aqui por São Paulo, bastam-nos os poucos segundos parados nos semáforos para que sob nossos olhos se descortinem as cenas dos bastidores explícitos da vida.

Parece um laboratório de gente.

Gente de todos os mundos, de todas as idades, de todas as raças, de tantas realidades distintas!; cada qual num ato introspectivo e solitário de luta , no duro palco da sobrevivência.

E naquela manhã, ainda não tão distante de mim, eu também aproveitava, parada no semáforo, a oportunidade de participar das cenas do violento cotidiano, quando ele se aproximou.

Mal alcançava a pequena fresta que distraídamente deixei aberta no vidro do carro, e na pontinha dos seus pés de menino-criança, de não mais que nove anos de idade, se espichou para me alcançar e me abordar quase "profissionalmente":

-Hei, quieta!- passa a bolsa, vamos, passa rápido, senão te furo!

E de súbito, eu me vi ali, refém dum pequeno estilete que mal cabia naquela mãozinha, estrategicamente sobreposto ao meu pescoço, num dos tantos faróis vermelhos que se fechara à fatalidade, e que a mim, parecia nunca mais se abrir.

Jamais sabemos como vamos reagir a tais abordagens.

Talvez eu até conseguisse imobilizar seu frágil braço, mas preferi não arriscar.

Então, num gesto quase automático, abaixei o restante do vidro, e numa calma vinda dos céus, expliquei-lhe:

-Oi, estou sem a bolsa hoje, pode olhar, e agora? Vamos ver se tenho algo aqui... pra você .

-Então passa "ticket", tia! Você tem? Passa qualquer tipo de ticket!

-Olha, também nunca tive esses tais de tickets. Então, vamos combinar:sempre passo por aqui, certo? Qualquer dia deixo um presente pra você.

E ele, aquele pequeno ser tão agressivo, milagrosamente reverteu o estilete para o bolso e me respondeu, num amável tom de voz, literalmente o que segue:

-Tá bom tia, me desculpa, tá?...

Respirei aliviada e acelerei o pulso. Mal conseguia reacelerar o carro.

Perplexa e assustada, parei para analisar.

Às vezes não me parece tão difícil acolher e transformar a infância carente e /ou delinquente.

Não há um olhar verdadeiro ou um diálogo franco que não penetre no coração duma criança.

Com certeza, o défict é de amor.

Mas esse tal de amor, me parece não encontrar seu melhor palco por aqui.

Retornei àquela esquina várias vezes por força da necessidade, e sempre que passo por lá, meus sentimentos se misturam...

Nunca mais o vi .

Penso que provavelmente seguiu em busca de mais um farol vermelho da cidade cinza...

Mas aquela cena foi tão forte, que às vezes tenho dúvidas.

Será?