Mais uma da pátria.

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Eu não sou normal. Quando estou em uma situação de perigo, quero dizer. As pessoas comuns choram, ou gritam, ou desmaiam. Mas eu, eu canto o Hino Nacional! Isso mesmo, o hino.

Sei que parece estranho, mas é o que eu faço quando isso acontece. Se levo um susto, já inicio os primeiros versos.

Até passei por uma situação constrangedora em meu casamento. Todos estavam lá, parentes distantes e próximos, amigos mais e menos íntimos, todos eles. E quando chegou a minha vez de dizer o tão esperado ‘sim’, o vento derrubou um dos arranjos florais, e eu já estava no estribilho com todos me olhando espantados quando minha esposa conseguiu me acalmar.

Escrevo essas palavras por causa de um incidente ocorrido dias atrás. Estava eu em um ônibus lotado indo ao trabalho, quando um homem suspeito subiu. E eu tinha razão em desconfiar dele.

- Quanto custa a passagem? – Perguntou ele.

- UUMM... re... re... real e se... sessen... ta! – Respondeu o cobrador gago.

De repente, o indivíduo anunciou o assalto. As pessoas normais, claro, tiveram as reações que era de se esperar. E eu lá, me controlando para não soltar um ‘Ouviram do Ipiranga... ’.

- Aí! Todo mundo pegando relógio, jóia e dinheiro, sem muita demora. – disse o assaltante, que vinha passando uma touca vermelha, onde deveríamos depositar nossos pertences.

Eu estava usando um relógio de família. Nenhuma jóia rara, mas era algo que eu realmente gostava e que tinha um alto valor sentimental. Resolvi que não o entregaria.

- Aí, meu tio – disse o meliante – Pode passar o relógio também.

- Desculpe, mas não posso senhor.

Comecei a ficar nervoso diante da situação.

- O que foi que você disse? – ele apontou a arma para a minha cabeça – Passa logo essa porcaria! Vamos que eu não tenho o dia todo!

- O senhor mesmo disse, é uma porcaria. Por que perder seu tempo com isso?

- Passa logo isso moço! – Grita uma mulher desesperada.

- Vo... Vo... Você quer mo... mor... morrer... ca-ra?

- Eu vou te matar, meu irmão!

- Hum... – não agüentei mais – “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas; de um povo heróico o brado retumbante...”.

- Ficou maluco, cumpadi? Passa logo o bagulho!

- Dá logo isso pra ele moço, vai ser melhor!

- “E o sol da liberdade, em raios fúlgidos; brilhou no céu da Pátria nesse instante. Se o penhor, dessa igualdade...”.

- Você quer morrer mesmo né?

- Moço...

- Tô Fi... fican... cando ner... vo... voso!

- “Conseguimos conquistar com braço forte!”.

Nesse momento, o pessoal do ônibus começou a me acompanhar na cantoria. Eu não entendi absolutamente nada, e só conseguia continuar cantando:

- “Em teu seio, ó Liberdade; desafia o nosso peito a própria morte!”. – e todos – “Ó pátria amada, idolatrada, salve, salve!”.

- Cala a boca todo mundo, se não eu vou atirar, hein! – gritou o bandido já mostrando sinais de nervosismo – Olha que eu atiro hein!

- Então atira! – disse um homem ao fundo – Atira, mas a nossa pátria não vai se render a esses atos de vandalismo e injustiças. Viva o Brasil!

- Viva!

- Vi... – Depois de todo mundo – Vi... viva!

- Cala a boca, gaguinho! – Gritou o assaltante.

- Viva o Brasil! – Insistiram todos.

- “Brasil, um sonho intenso, um raio vívido...”.

- “De amor e de esperança à terra desce” – gritou o pessoal, num coro uníssono.

- Fora, bandidagem! – berrou uma moça grávida, se escondendo para não ser vista pelo meliante.

E todos começaram a bater os pés no chão do ônibus, fazendo aquele escândalo.

- Bando de maluco! – disse o assaltante – Abre a porta motorista, que eu quero descer. Precisava tudo isso por uma arma de brinquedo? É de brinquedo, seus trouxas, é de brinquedo!

- A... Abr... abre lo... go essa por-ta pra e... ele!

O rapaz desceu, deixando nossos pertences jogados no chão do ônibus. Depois que a calma se restabeleceu, fui aclamado como herói, muito aplaudido. Dei até entrevistas para a imprensa. Fui capa de revista. “O patriota que salvou o dia”, diziam as manchetes. “Salvos pelo Hino Nacional!”.

Devem ter achado que fiz aquilo de propósito, ou por protesto. Que em um ato de heroísmo, invoquei a pátria contra a patifaria. Não, minha gente, por favor, não é nada disso. Aquilo é apenas meu jeito de ficar nervoso. Nada mais que isso. Fosse eu uma pessoa normal, teria de olhos marejados, ficado sem o meu relógio.

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Lucas Pimentel

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