Cartas de Salamanca - Lazarilho de Tormes
O grande destaque da literatura espanhola é, sem sombra de dúvidas, Dom Quixote. Muito já foi dito sobre a obra maior de Miguel de Cervantes e, certamente, muito ainda dirão. Dom Quixote e Sancho Pança são personagens impagáveis. A luta contra os moinhos de ventos e outras tantas mensagens contidas no livro demonstram não ser à toa que, ao longo de mais de quatrocentos anos, a obra siga causando tamanho alumbramento.
Porém, desejo falar sobre outra preciosidade literária espanhola, menos conhecida no Brasil: Lazarilho de Tormes. Trata-se de uma novela picaresca em que o narrador conta sua autobiografia. Lazarilho é o diminutivo de Lázaro, o protagonista, que nasceu no próprio leito do rio Tormes, em um lugarejo bem próximo a Salamanca, conforme está descrito no começo do livro. Quando o mesmo conta oito anos de idade, acompanhando sua viúva mãe que consegue trabalho de cozinheira para estudantes, deixa o lugarejo, passando a viver na própria cidade. É nesse contexto que surge um cego necessitando de um guia e manifesta a vontade de levar o garoto consigo. Como a mãe de Lázaro tem outro filho menor e atravessa uma situação de extrema dificuldade, aceita que seu primogênito siga com aquele a quem serviria de guia. E assim tem início a saga do pequeno Lazarillho.
Nos primeiros dias da jornada, o astuto cego, que logo começa a ensinar a Lázaro manhas e espertezas que diz serem úteis para superar as dificuldades que a vida lhes apresenta, também revela seu lado avarento, a ponto de regrar mesquinhamente o comer dado ao guia. Este, por sua vez, começa a usar de artifícios não lícitos para sobreviver, subtraindo do ‘amo’, quando pode, algo mais substancioso para saciar-lhe a fome. Dessa convivência, são relatadas umas tantas ardilosas passagens, como, por exemplo, quando eles estão comendo um cacho de uvas, sob um ‘pacto’ de cada um tirar uma uva por vez e, em determinado momento, o cego surpreende Lázaro dizendo saber que este está sacando três uvas de cada vez. O menino, espantado, pergunta como é possível ele saber, já que não enxerga: e o interlocutor sentencia: “é que eu passei a tirar de duas em duas e você não disse nada”.
Dias depois, Lázaro deixa a companhia do cego e passa a viver com seu segundo ‘amo’: um padre. Outra difícil experiência na vida do garoto, pois o religioso era muito pior que o anterior na questão de alimentação. Em certos dias, o cura somente dava-lhe pão seco. Diante da necessidade de sobrevivência, Lázaro passa a roubar alimentos que o religioso guardava com extremo cuidado. Pensando que eram ratos ou cobras que estavam surrupiando seus mantimentos, o padre começa a fazer cerrada vigilância e, quando descobre ser Lázaro o autor dos furtos, decide jogá-lo no olho da rua.
Já na cidade de Toledo, sobrevivendo de esmolas, Lázaro encontra um fidalgo muito bem vestido que o leva para sua companhia. Crendo que tiraria a “barriga da miséria”, o guri logo se decepciona ao perceber que o ‘nobre’ vivia apenas de aparência e que, em verdade, era pobre e, também, não tinha o que comer. Não havendo alternativa, Lázaro segue com sua vida de pedinte e, por ironia do destino, tendo que dividir o que consegue com seu novo ‘amo’. Mas, ao contrário dos anteriores, esse o trata de forma gentil, sem grosserias nem agressões. O desenlace do convívio acontece a partir do ‘despejo’ de ambos da casa em que viviam, por falta do pagamento do aluguel.
Lázaro ainda fala de sua convivência com outros patrões, e registra seu início na vida laboral, que se dá vendendo água com “um asno y cuatro cántaros”. Na idade adulta, surge um outro religioso que o acolhe e lhe proporciona galgar o cobiçado posto de “pregoeiro público”. Relata, com satisfação, que, nessa fase da vida, atingiu um elevado nível social, e, também, revela felicidade pessoal por estar casado. No entanto, em relação ao matrimônio, diz ser sabedor da existência de “conversas maliciosas” que insinuam um romance entre sua mulher e o referido vigário, e que o seu casamento seria apenas uma forma que o religioso encontrou de ‘ajeitar’ a situação.
O refinado humor é uma das características predominantes do livro, tornando-o leve e de agradável leitura. Vale ressaltar que, como pano de fundo, o relato é permeado por contundente crítica à importantes instituições daquele momento histórico — a publicação é do princípio do século XVI —, como a Igreja. E a comprovação do incômodo gerado pela referida crítica foi o fato da censura da Santa Inquisição o alcançar, e proibir a sua reprodução por longos anos.
Um enigma que perdura no tempo é a autoria da obra, visto que a mesma é apócrifa. Críticos literários e historiadores tentam desvendar o mistério e concluem que o é de difícil solução. É de fácil percepção que, por detrás daquele simples relato autobiográfico de um “homem do povo”, existe um circunstanciado e profundo questionamento filosófico que, creio, termina por revelar a grandeza da obra. Mas, daí a identificar a autoria é outra coisa.
Ao concluir a leitura do Lazarilho de Tormes, foi-me inevitável não ficar pensando — e até imaginar situação análoga — nos destinos de outros meninos-guias existentes em nossa realidade, nos dias atuais. Perguntei-me, então: como esses relatariam as agruras passadas sertão afora? Como viveriam — ou vivem — semelhantes criaturas, singrando áridos caminhos pelas margens de um poluído rio Mossoró? São perguntas que, por vezes, somente encontram respostas plausíveis nas páginas da bem urdida literatura.