AUTÔNOMO DE "SI MESMO"

Não faz tanto tempo assim que eu o conheci, mas tal tempo já me é mais que suficiente para que dele eu relate com ternura.

Há mais ou menos dez anos, talvez ele já contabilizasse umas dez primaveras.

Difícil de precisar pois era de aspecto frágil, franzino, muito desnutrido.

Sempre vestia uma camiseta branca surrada, daquelas de propagandas já desbotadas, um short de tecido ralo, calçava sempre chinelos de dedos, e na tez da face trazia uma leve cicatriz já esvaecida, apesar da sua tenra idade de menino.

-Caí da garupa do meu amigo, tia.

Engraçado...nunca soube seu nome.

Assim que eu parava meu autómovel no estacionamento do parque, durante anos ele sempre me perguntou, com um sorriso tímido:

-Posso guardar, tia?

Na verdade sei que contava com aquilo.

Certa vez lhe perguntei aonde morava e se conseguia "algum" razoável para ajudar a sua mãe.

-Faço a feira, tia! - disse-me com um brilho nos olhos foscos, também me informando que morava logo alí.

E eu sabia muito bem que os "logo ali" dessas crianças, nem sempre são tão "alí" quanto lhes parece.

Tomava dois ônibus para chegar do "alí' até lá", nos quais passava despercebido pelo tamanho, e quase nunca pagava a passagem, me contou certa vez.

Ainda não estava na escola...

-Não consegui vaga "esse" ano, tia.

Talvez a vaga até existisse sim, o que não existia era suporte social para ir à escola-pensei.

Fazia tempo que não o via e dia desses soube que a administração do parque começou os proibir de "trabalhar" naquele estacionamento.

Mas como é sabido, essas medidas de contenções sociais são muito frágeis e pouco efetivas, posto que não se acaba com a miséria e com o "trabalho" informal apenas com um mero decreto administrativo.

E hoje, depois de algum tempo, distraidamente passei pela porta do parque, e lá estava ele...na função DE SEMPRE.

Foi aí que percebi o quanto o tempo voa sem que percebamos.

Postado no seu costumeiro local de trabalho, assustei-me com a sua imagem.

Já é um belo homem.

Pude perceber uma barba rala, um esboço de cavanhaque e bigode, e o mais incrível, trajava um terno escuro arrematado com um comportado nó de gravata.

De boa altura e postura elegante, parecia um contratado segurança dum condomínio de luxo.

Aquela cena me emocionou mais do que um final dum drama de teatro.

Alí estava "ao vivo e em cores" uma história da vida com final...não sei precisar se feliz ou não. O fato é que a sua "chance" passou, mas... sem nenhuma dúvida, pude perceber que considera-se um profissional.

Para mim...eu sei, um Nobre Profissional.

O título dessa minha história, a princípio pareceu redundante, não foi?

Pois saibam que na vida de muitos é mister se tornar "autônomo" inclusive de "si mesmo".

Foi um pleonasmo que encontrei para tentar ilustrar que o abandono muitas vezes nos torna auto suficientes para seguirmos inteiros...pela vida, a despeito das perdas irreparáveis.