REBELDE
O gabinete do sujeito era impecável, confirmando a boa impressão que eu já colhera por telefone, em contatos anteriores. Era confortável sem ser luxuoso, muito arrumado e limpo. Sentia-se que fora privilegiada a funcionalidade, em todos os seus detalhes. Até na comodidade.
Fiquei satisfeito com isso, pois revelava-me um pouco da pessoa com quem estava aumentando os meus negócios. E tudo o que via me falava de profissionalismo e correção. Eu estava satisfeito.
Durante a reunião, porém, fui-me apercebendo de um conjunto de pequenos quadros na parede por detrás do meu interlocutor. Eram apenas impressos, demasiado longe para que conseguisse lê-los. Mas não me pareciam os tradicionais diplomas que tantas pessoas gostam de colocar nas paredes dos seus escritórios. Por isso, acabei por perguntar o que eram, e a resposta foi, no mínimo, surpreendente.
“Isso aí é a minha coleção de multas !”, disse-me o velhote, alegremente. “-Eu tenho tendência de ser um pouco organizado demais, e de gostar de fazer tudo de acordo com as regras...Isso aí, é para me lembrar que não se pode ser assim...”
“ – Mas ninguém é multado por seguir as regras...” – disse eu, meio descrente, enquanto via uma sombra passar pelo semblante dele. “ - Posso olhar mais de perto ? “
“- Claro ! Pode olhar o que quiser. “ – foi a resposta. Então aproximei-me mais e, desconcertado, vi que havia multas de todos os tipos. Até multas por excesso de velocidade que, aparentemente, são indiscutíveis.
Vendo o que eu olhava, o velhote riu-se. “ - Está intrigado comigo, não é? Um sujeito com a minha idade, todo certinho, que gosta das coisas todas certinhas, arrumadinhas, e que sai por aí correndo de carro, cometendo infrações ... Adivinhei ?”
Ele tinha lido os meus pensamentos, claro. Confessei que sim...que era isso mesmo. Então ele foi explicando:
“- Eu entendo a sua surpresa. Mas nem tudo é o que parece, sabe? Esta aqui, por exemplo, é de excesso de velocidade. A lombada eletrônica apanhou-me a 48 Km por hora, onde só podia trafegar a 40. Foi esse o meu pecado, oito quilômetros por hora a mais. A velocidade de uma pessoa caminhando depressa, eh eh “
“- Mas a multa é justa...!” – disse eu – “ A lombada estava lá para isso, não é ? “
“- Oh, sim ! Técnicamente, foi uma infração, sim. Claro que a multa é pertinente. Por isso está aí, de recordação. Por ser pertinente. Mas não é justa ! Isso tudo aconteceu numa estrada que é também a rua principal duma cidadezinha quase fantasma, sabe, uma daquelas cidades que não vão para a frente... cheia de restaurantes fechados, dum lado e de outro, por falta de clientes.
“- Mas a lombada estava lá... e lei é lei... “- insisti
“- Realmente estava. Estava desligada há mais de um ano. Então, a velocidade que ela impõe e fiscaliza, não se aplicava. Por isso segui a lei, que diz que a velocidade máxima dentro de povoação é de 50 Km/h.. E fui multado a 48, apenas porque alguém resolveu voltar a ligar a lombada, que, aliás, controla uma velocidade diferente daquela que a lei impõe. Se a lei, e os oito quebra-molas existentes desde os tempos em que a cidade tinha movimento, impõe 50, valerá a pena impor 40 com a lombada ? A diferença é mínima. È a velocidade de um adulto caminhando depressa... Concordo que a lei é para se cumprir. Mas, precisamente por isso, a lei não pode ser burra...”
Acabei concordando, entendendo o seu ponto de vista. Mas olhando para uma outra multa, perguntei: ”-E esta aqui ? Aqui, o caso é outro ! Nesta, o senhor ia a 98 Km/h. num lugar onde se pode trafegar apenas a 80. Não tinha lombada recém ligada, nem nada assim...”
“- Realmente, meu jovem, o caso é outro! Concordo ! Nesse caso, trata-se duma estrada Federal, com duas pistas para cada lado, onde a velocidade de circulação é de 110 Km/h. , e eu ia a menos de 100. Acontece que há uma curva acentuada, com inclinação de piso feita para o lado errado, sem sinalização prévia suficiente, sem anteparos de
segurança, sejam de concreto ou de aço, sem sinalização de piso, sem nada...E, nessa curva, é freqüente ver caminhões tombados, por ser tão falsa. Eu mesmo já vi caminhão tombar, nela. Já houve mais de trinta acidentes, ali, todos de caminhões.
Então resolveram limitar a velocidade a 80 Km/h, em vez de fazerem as obras necessárias na referida curva, e de fazerem uma sinalização adequada ao local, alertando os caminhões. Qualquer carro é capaz de fazer essa curva tranquilamente, à velocidade que a estrada prevê: 110 Km/h
“- Mas não há sinais, avisando que o limite passa a 80 ?
“- Há dois, sim ! Por isso, a multa é pertinente, e está aí na parede... Os sinais existem, sim. Um deles, demasiado antes para fazer sentido, se alguém o vir – já que está no meio do mato. O outro, está demasiado perto. Junto do radar. Mesmo baixando de velocidade imediatamente, o radar ainda nos apanha em excesso. E, por acaso, esse é o único lugar da estrada onde acontece alguma fiscalização. Nunca vi nenhum tipo de prevenção, nem nenhuma autoridade sinalizando o problema. Nem quando tem acidente lá...”
“-Então a multa é pertinente, também?” – perguntei, gostando do velhote.
“- Claro que é ! Nessa parede aí, são todas !” – respondeu rindo... “ – Naquela parede ali, são multas fiscais, também muito curiosas...Quer ver algumas? “
Eu não quis. Despedi-me e vim embora.
E confesso que fiquei impressionado com aquele homem severo, respeitado por todos, que colecionava multas pertinentes mas injustas, pondo-as na parede para não se esquecer nunca que a lei, por ser lei, é para ser cumprida. Mesmo sendo burra ...Mesmo sendo usada para mostrar serviço, arrecadar, e aparentar governação.