Série "Ditados na berlinda" 9: Casa de ferreiro, espeto de pau?

Quem leu no meu perfil sabe, quem não leu saiba agora: sou arquiteta. Não é lá grande coisa, apenas uma profissão como outra qualquer - até o momento em que você se aventura a fazer sua própria casa. Aí a coisa adquire uma dimensão diferente: fico imaginando um advogado tentar fazer a vez da defesa em seu próprio julgamento, um médico se apalpar e ver o resultado de seus próprios exames, um psicólogo tentar aliviar seu próprio trauma. Não funciona, é melhor que um colega o faça.

Mas, em virtude das restrições orçamentárias em que nos encontrávamos, fui obrigada a projetar, administrar e fiscalizar a obra. Sozinha, claro. Desta forma, também em virtude da minha pouca experiência à época, a minha casa serviu de cobaia para que os erros que eu cometi nela não fossem cometidos nas próximas obras - e assim orgulho-me de, nas outras, ter cometido apenas erros absolutamente inéditos.

Como o engenheiro que calculou a estrutura, à época meu parceiro de trabalho, foi contratado por um valor compatível ao que eu estava ganhando, creio que não tenha se empenhado muito nos cálculos, e assim, além de “esquecer” de uma viga – que teve de ser construída acima do piso pronto, e hoje fica dentro do armário e serve como um utilíssimo apoio de sapatos – ele também “esqueceu” de um degrau à entrada, o que fez com que a escada ficasse um pouco íngreme. Mas nada que minha tia não pudesse subir em pouco menos de meia hora. Evidentemente, depois destes eventos, acabei ganhando um ex-parceiro de trabalho.

Os profissionais que contratei também foram um caso à parte. Tinha o seu João, o encanador. Gastei horas e mais horas fazendo o projeto da passagem da tubulação pelas paredes da casa, e assim que ficou pronto entreguei-o ao Cinderela (assim ele se auto-intitulou um dia, fazendo referência ao Fusca cor de abóbora que possuía). No dia seguinte, ao ir ver a obra, constatei que nenhum dos canos passava por onde o projeto determinava. Quando questionei Seu João, ele serenamente disse: “Calma, doutora, nóis sabe trabalhar”. Só me restou medir, redesenhar e tirar fotos do que foi executado para que, depois, ao tentar colocar um quadro na parede ou fixar com parafusos uma estante, não criasse também uma cachoeira artificial.

Tinha também Joãozinho, o eletricista. Este, pelo contrário, pecava pelo excesso de zelo. Pediu-me para comprar cabos de todas as cores imagináveis, pois queria usar uma cor para cada circuito da casa. E olhe que imaginou muitos! Sempre assobiando “Hey Jude”, Joãozinho fez o quadro de luz parecer o painel de comando de uma nave espacial de filme de ficção, tamanha a quantidade de disjuntores – todos, evidentemente, discriminados com sua letra impecável: “tomadas da sala”, “luz do corredor e do quarto da esquerda”... Porém tenho certeza que meu mundo particular não se acabará em fogo, pois curto-circuito aqui não terá vez. Já em água, quem sabe...

E Dija, o empreiteiro - um rapaz muito competente - tinha rompantes de arquiteto. Tentei passar a ele o que imaginava para a minha casa: o estilo rústico das casas típicas do interior entre as quais passei minha infância, na fazenda em que meu avô trabalhava. A cada explicação sobre os acabamentos – tijolos de demolição irregularmente assentados, argamassa apenas desempenada nas paredes, batentes fazendo as vezes de caixilho – ele punha a mão no meu ombro e dizia: “escuta, você é arquiteta, esta é a SUA casa – por que você não faz direito??”

Bem, apesar do sofrimento e do longo tempo que durou a obra, a casa ficou pronta – ou semipronta. Muitas coisas ficaram por terminar, em virtude do dinheiro ter terminado bem antes. E uma delas foi o alçapão que dá acesso ao forro da cobertura e ao telhado. Este acesso fica numa saleta onde colocamos a tevê, e para que o buraco não ficasse totalmente aberto, fechei-o provisoriamente com um pedaço de papelão, enquanto não tivesse dinheiro para fazer um alçapão decente.

Noite alta, todos já dormindo, ouvimos um barulho que nos assustou. Eu e meu filho saímos dos respectivos quartos e demos de cara com um lindo gato preto, grande, gordo e de pelo brilhante, andando atordoado pela casa. Havia entrado no forro através do telhado, pisado no fechamento de papelão e caído (provavelmente de pé) no chão da saleta. O pobre gato, assustadíssimo, corria de um lado a outro, querendo sair. Como não via outra opção e recusava nossos chamados, subiu na estante da tevê e voltou, pelo buraco, ao forro da casa, onde permaneceu miando até altas horas.

Acho que preciso me programar para mandar fazer o alçapão. Afinal, dez anos se passaram... Tudo bem que toda obra tenha lá seus "gatos", mas com este ditado eu não gostaria de ter que concordar, por motivos óbvios.