Assim como os Nardoni, eu já matei

Assassinei um gatinho com poucos dias de vida. Vi muito sangue jorrando por sua cabeça e o seu corpinho trêmulo se debatendo no chão. Foi sem querer, eu juro. Nunca atirei, se quer, um pau no gato! O máximo que eu fazia era ameaçar um ou outro casal de felinos que resolvia se entregar à uma seção de fuck-fuck bem embaixo da minha janela. Foi um triste homicídio culposo que, até hoje, me faz acordar durante o sono com pesadelos terríveis.

Por15 dias tratamos de dois gatinhos pretos recém-nascidos. Minha irmã ia para a escola, às 6h da manhã, quando encontrou os pobrezinhos abandonados na calçada, prestes a serem pisoteados pelos pedestres ou abocanhados por um cão faminto.

Cuidamos dos bichinhos com todo o amor e carinho, abrigando-os em nossa casa, protegendo-os do frio e alimentando-os de três em três horas, na mamadeirinha de filhote de gente. Escolhemos nomes dignos para os dois: José Maria e Pedro Henrique. Nada de “Chaninho”, “Mimi”, “Loló”, ou qualquer outro apelidinho que menosprezasse a natureza daqueles dois seres lindos. Afinal, nascer nas ruas e na forma de um inofensivo bichinho, já era negativamente “kármico” demais para qualquer espírito.

Numa noite, enquanto me arrumava para um encontro com meu namorado, vi que os gatinhos acordavam de sua sonequinha noturna. Como estavam sobre a minha cama, entre os cobertores, achei melhor colocá-los no chão para que não se machucassem ao descerem sozinhos.

Fiquei uns cinco minutos observando o andar cambaleante dos gatinhos e os seus olhinhos ramelentos. Eram engraçados, amáveis e muito saudáveis. Abri a porta do meu quarto, vi a luz da sala acesa e disse para os dois irem com a minha irmã. Eles me obedeceram na hora, e correram em direção à sala.

Continuei me arrumando e escolhi o maior salto alto para usar naquela noite. Era lindo, de veludo verde-musgo e salto de 10 centímetros. Fui rebolando em direção à sala, me sentindo a tchutchuca mor da Zona Norte, quando senti que havia pisado com meu salto em alguma coisa. Não escutei nada, mas na escuridão que estava o corredor, pude ver um pequenino vulto se mexendo no chão.

Naquele momento, senti minhas mãos geladas e meu coração partido. Como falar que matei o gato? Se eu morasse em um prédio talvez faria como Alexandre Nardoni e jogasse o gatinho pela janela. Assim, eu teria muitas versões para esconder minha culpa. Poderia dizer que o bichano tentou pegar um passarinho e caiu. Ou então, que algum ladrão mal-encarado ficou com medo de ser reconhecido pelo felino e o matou sem dó, nem piedade.

Mas não! Eu era a verdadeira assassina e precisava assumir a culpa pelo meu ato de desatenção e irresponsabilidade. Peraí, mas antes disso o gatinho tinha que morrer de verdade.

Será que ele ainda poderia ser salvo?

Comecei a gritar: “matei o gatinho, eu matei, eu matei”. Minha irmã veio correndo e, com uma toalha, estancou o sangue da cabeça do gato com uma mão, segurando seu corpinho com a outra.

Saímos pela rua implorando por socorro e conseguimos uma carona até um veterinário 24h. Chegando lá, nada pode ser feito. O gatinho morreu de traumatismo craniano.

Paguei R$30 para o veterinário enviar o corpo do falecido José Maria para o crematório municipal de animais. Nem procurei saber se esse serviço realmente existe. De repente, pode até ser que o José Maria tenha servido de comida para leões e cobras ou que esteja empalhado na sala de algum colecionador.

Minha irmã me culpou.

Culpei Deus por não ter evitado essa tragédia.

Depois, culpei o destino por me fazer retirar um bichinho das ruas só para depois ter o desprazer de matá-lo acidentalmente.

Embora tenha enfrentado a ira de minha irmã e a reprovação de minha família e amigos, sei que fiz a coisa certa em assumir que matei, sem querer, o gatinho.

Fico imaginando se Alexandre Nardoni, suspeito de assassinar a própria filha Isabella, não teria passado por uma situação semelhante. De repente, ele ou a madrasta da menina Isabella excederam nas agressões físicas e pensaram que ela estivesse morta. Mesmo não tendo intenção de matá-la, resolveram se livrar do corpo, jogando-o pela janela. Penso no que eles estão sentindo por dentro. Pior do que a reprovação dos outros é a reprovação da própria consciência e o inferno que a mentira pode criar dentro da mente.

Eu não os recrimino. Afinal, eu matei um gatinho. Talvez eu escondesse o fato de ter matado, sem intenção, a minha amada filha.