Cegueira fulminante
Baseado no maravilhoso livro de Saramago, Ensaio sobre a cegueira.
- Para onde dona?
- Rua Almirante Feijó.
Nunca tive curiosidade em saber quem foi Almirante Feijó, mas moro na rua com seu distinto nome à quase cinco anos. Também nunca soube os nomes ou memorizei os rostos dos taxistas que me conduziam por essa cidade. Entretanto, o destino gosta de mudar o marasmo da nossa rotina.
- Noite agitada hoje. Já peguei cada passageiro...
Por quê todo taxista gosta de puxar conversa?
- Acabei de deixar uma moça bonita naquele hotel do centro. Usava uns óculos escuros, imagine só. Parecia meio suspeita, se é que a senhorita me entende...
E eu entendia. Continuava sem querer conversar com o taxista. Pensava nos livros que precisava ler, nos textos que necessitava escrever. Além disso, sentia fome.
Quando uma pizza de mussarela passeava saborosa pela minha mente, aconteceu o inacreditável.
- Estou cego! Cego!
- Como, senhor?
- Fiquei cego. Não vejo mais nada!
Graças a Deus o trânsito estava parado. Abri a porta do carro, saí, abri a porta do motorista, conduzi o novo cego ao banco do passageiro e tomei o controle do volante.
- O senhor está sentindo alguma coisa?
- Nada senhorita. Só não vejo mais. Está tudo branco.
- Branco? Achei que a cegueira fosse negra.
- Mas eu vejo branco.
Tudo aquilo parecia misterioso e absurdo. Como alguém ficaria cego assim, sem mais nem menos? Não sou oftalmologista para entender disso, mas acho que a cegueira não vem assim, de repente, e ainda mais ao volante.
O trânsito começou a fluir. Já estávamos bem perto da rua onde moro.
- Vou levar o senhor para minha casa. De lá tentamos falar em alguma clínica.
- Posso ligar para minha mulher? Conto o que aconteceu e ela me busca.
Chegamos à rua Almirante Feijó. Parei o taxi na frente de casa e ajudei o taxista a descer. Entramos. Ofereci um copo d'água, que ele bebeu tremendo.
Ligamos para quase todos os consultórios de oftalmologia da lista. Fechados. Já era quase meia-noite. Ele telefonou para a mulher, que em vinte minutos chegou em casa com o filho e levou taxista e taxi para um futuro desconhecido. Um futuro branco.
Hoje, algumas semanas mais tarde, ainda não sei a razão dessa cegueira ou, como o governo chama, o mal branco. A cidade já se transformou em caos e eu, por linhas brancas e provavelmente tortas, escrevo essa história sem saber que fim teve aquele simpático taxista. Sem saber qual será meu próprio fim.