A VÉIA ROTA
Outra personagem de vulto ingressa na Galeria dos Exóticos de Picos. Nada menos que a "Véia Rota", suja, debochada e cachaceira,
a "Véia Rota" era bem diferente da "Véa do Fogo”. A Rota bebia uma cachaça amuada e ficava de fogo, a outra não precisava beber, parecia de fogo queimando os últimos neurônios no circuito da linha final de chegada. Uma era limpa de boca e vestes, a outra, suja de tudo e por isso, Rota.
Montada no dragão de São Jorge, a Rota lançava baforadas de palavrões ardentes, enquanto a outra, procurava agradar seus simpatizantes prometendo presentes. A Véia do Fogo dizia ter um baú de ouro em sua casa e todo dia marcava a hora de dá-lo a Diassis, mas nunca pôde oferecer esse tesouro, pois não o possuía, mas dava um tesouro bem mais valioso - a alegria de apresentar na rua sua dança afro e o gracejar com o príncipe de sua imaginação senil, o próprio Diassis, que até então, era solteiro.
Deixemos a Véia do Fogo descansar em paz e brilhar entre as estrelas no infinito azulado e tratemos da Véia Rota para quem abrimos esta página. A Rota jamais imaginou que sua história seria contada em um livro, se o soubesse, talvez tivesse pintado a aquarela de sua vida com as cores do arco-íris, ou pintou, com as cores do arco-íris que o mundo lhe ofereceu.
Dizem que quem não sabe rezar xinga a Deus, mas cada um conversa com Deus na linguagem que conhece e Deus que conhece todas as línguas, tudo ouve, tudo entende.
Ajoelhada diante da cruz na Rua São Benedito, também conhecida como Rua do Cruzeiro a velha dizia lá suas orações, sabe-se lá o quê. Ali, a dez metros do cruzeiro, estava o primeiro cabaré, o cabaré mais central por onde a Rota passava com seus trapos fedidos, até alcançar o centro da cidade e tomar sua primeira cachaça do dia. Foi naquele pedaço de chão próximo à cruz do Redentor que Milton Belo foi morto, até hoje não se sabe por quem nem por quê. Talvez a Véia Rota orasse pela alma do finado Milton Belo ou por si mesma. Nunca se sabe o que se passa dentro de um coração fechado nem numa vida sem amores, sem cores – uma vida em preto e branco ou só em preto, porque a cor preta é exatamente a de ausência de cores. Luto profundo de vestes e mente. Perdera ela o marido? Filhos? Perdera tudo que tinha ou nunca tivera nada para perder!? Talvez um coração fechado para o mundo, mas aberto para Deus.
A Véia Rota estava em oração. Um transeunte curioso com a cena incomum que via resolve perturbar o momento de intimidade com Deus daquela criatura tão desprezada pelos homens, mas decerto amada por Deus tanto quanto outros pecadores que se vestem de linho fino e seda, mas por dentro são como sepulcros pútridos..
- Tá rezando ou xingando a Deus, Véia Rota?
- Ô meu Deu - disse a velha em voz alta: Tanto palavrão que eu sabia e agora não me lembro de nem um:
- Tá xingando a Deus, Véia Rota! – insiste o transeunte.
- Rota é a buceta da pauta que te pariu,’ fii’duma égua.
Aquela alma sofrida um dia foi chamada à presença do Criador. Sem medo, apresentou-se como era, despida de maldades e sem nada nas mãos.
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Adalberto Antônio de Lima