A DOR QUE SE SENTE
“O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega
a fingir que é dor a dor que deveras sente.”
Esse verso de Autopsicografia, do poeta Fernando Pessoa,
todo mundo conhece. Mas tem gente que não sabe o segundo verso,
que é o que mais tem significado para mim. Diz ele: “E os que lêem o
que escreve, na dor lida sentem bem, não as duas que ele teve, mas só
a que eles não têm.” Sou intrigado com este segundo verso. E como
não sou poeta, nem crítico, nem especialista em literatura, e dela entendo
muito pouco, fico aqui a pensar com meus portugueses botões... são
tantas as questões que vou enumerá-las!
1 - “E os que lêem...” - se os que lêem são os poetas que
escrevem, então eles, os poetas, escrevem e não “escreve”, assim no
singular como está lá. Arquibaldo, o breve, diz, com a certeza de quem
sabe, que “os que lêem” somos nós, que lemos o que ele, o poeta fingidor
escreve. Até porque, na dor lida sentem bem que dor é essa.
2 - E aquele “não as duas que ele teve...”, o que significa? Que
duas dores são essas?
Árqui, meu salvador, explica sem muita dificuldade.
– As duas dores que o poeta teve estão evidentes no primeiro
verso, ou seja, a dor que finge sentir e a dor que deveras sente,
esclarece.
3 - E finalmente o finalzinho: “... mas só a que eles não têm.”
Eles quem? Árqui. Eles quem?
– Simples mestre - odeio quando ele me chama de mestre -
eles, somos nós, os que lêem os poemas que eles escrevem.
Reli centenas de vezes e só depois de muito esforço e passadas
dezenas de anos é que compreendi o que o poeta tinha escrito naquele
verso que era o que mais me fascinava. Não foi propriamente a
presumível elevação do meu nível cultural que, supostamente, deveria
ter adquirido ao longo dos anos. O responsável por essa sofrida
compreensão foi senão Arquibaldo, o breve; a mais estúpida e farsante
criatura postada ao meu lado para convívio diário, inventada por uma
falha de meu próprio caráter. Enfim, só me resta aceitar tudo o que é
capaz de fazer o lado negro da minha mente.
Com a ajuda de Arquibaldo, o breve e de Fernando Pessoa -
que companhia hein, Árqui? - pude compreender como funciona o
fingimento. Muitas vezes a gente finge que é feliz, só por amor; para
agradar a mulher amada, por exemplo, como elas também o fazem.
Fingimos que concordamos e que gostamos, e fingimos que aceitamos
tudo o que não concordamos, não gostamos e não aceitamos. Outras
vezes fingimos que estamos satisfeitos com o dinheiro que nos pagam
pelo nosso trabalho. Fingimos que dá pra viver, com certa dignidade,
com o dinheiro da aposentadoria; fingimos que acreditamos que o
próximo governo vai melhorar a vida de todos nós, confundindo, assim,
fé, esperança e caridade com conformismo, desejo e delírio.
Fingir também é uma maneira de amenizar a dor e, às vezes, até
mesmo, de eliminar a dor que a gente deveras sente. É a nossa parte
Poliana. Nosso lado madre Teresa, carregado de culpa na origem, sem
chance de escolha. Fingimos que acreditamos que vai dar certo, que
tudo vai melhorar e que vai passar, porque, afinal, há males que vêm
para o bem, se bem me lembro. Somos todos poetas em Fernando
Pessoa. “E assim nas calhas de roda gira, a entreter a razão, esse
comboio de corda que se chama coração”.
Do livro “Tem Gente” – editora Edjovem – de César Cabral