O OVO DA SERPENTE Berenice Heringer

"É certo que um dos lados da virtude termina no orgulho com uma ponte construída pelo demônio". (Victor Hugo - 1802/1885)

A grande utopia da humanidade é que o avanço da ciência, o progresso e a tecnologia haveriam de nos resgatar e reconduzir ao oásis da felicidade. Para nós, o ônus da promessa é ainda maior. Thomas Morus situa sua eutopia (lugar perfeito) no Brasil recém-descoberto, umas três décadas após. Com o famoso "jeitinho" e a heresia de que Deus é brasileiro, continuamos na ufania de que "tudo vai dar certo".

Temos de olhar para trás, mesmo correndo o risco de virar estátua de sal, igual à mulher de Lot, quando Sodoma e Gomorra foram pulverizadas pelo enxofre escaldante.

A neurociência está mapeando milimetricamente o cérebro humano. Há uma região chamada amígdala (pequena amêndoa) onde os instintos primitivos reptilianos podem recrudescer e tomar conta da cena. Os bem-intencionados, os criacionistas que negam a evolução das espécies, nem admitem que nosso ancestral comum é o macaco. Recuando mais, vamos até aos tiranossauros, passando antes pela sedutora serpente do Éden. O Projeto Genoma mapeou e vai continuar mapeando TUDO. O fato de se negar uma evidência com argumentos não significa que ele deixe de existir. Senão, caímos na armadilha fácil do sofisma. Essa natureza humana que se almeja, nomeia-se e se entroniza como divina é humanóide, um protótipo, até mesmo uma montagem, um arremedo remendado como o famoso frankiestein. Quando se nega um problema, ele não some como num passe de mágica. Os advogados que defendem agressores e transgressores são peritos em encenação. Além da história, temos de revisitar o sótão da mitologia e das fábulas e o porão do Velho Testamento. É o que Jung chamou de inconsciente coletivo, o histórico da psique humana. No VT, em Gênesis, Sara, a virtuosa serva do Senhor e casta companheira de Abraão, não passa de uma manobrista que conduz seu consorte, o velho e sábio patriarca hebreu, até convencê-lo a expulsar para o deserto Agar, a escrava, e seu filho bastardo Ismael, semente espúria de Abraão. Como mãe e filho se salvam milagrosamente, este fato embota o entendimento de todos e minimiza ou exclui a evidência de que Sara levou a efeito a hedionda má-nobra. Ela ficou isenta, pois não colocou a mão na massa. Uma sagaz má-drasta, a de maior peso na história, mas alçada à categoria de heroina e escolhida do Senhor, por ter gestado e parido um primogênito (seu, pois o de Abraão continuou a ser Ismael) após vinte anos de esterilidade. O endeusado Isaac, tornou-se pai do Judaísmo, enquanto Ismael fundou o Islamismo. Mas Abraão seria desafiado e matar Isaac...

Nos contos de fadas, a malévola dos Irmãos Grimm, os gênios que desvendaram o lado mau dos maus e escancararam o palco das iniqüidades, é a Madrasta da Branca de Neve que saiu vitoriosa em quase todos os lances. Também temos Joãozinho e Maria, os orfãozinhos...

Paternidade e maternidade não santificam ninguém. Nem toda mãe é Maria. Madonna é só uma cantora pop. Davi esqueceu o filho morto e logo se deitou com a mulher de Urias.

"A corrupção geral do gênero humano" está registrada em Gn. 6,1.

Alberto Goldin, talentosíssimo escritor e psicanalista, autor de "Freud Explica", conta o caso de uma paciente insistir para ser submetida a uma cirurgia e retirar uma cobra que supunha levar no ventre. Não era lombriga nem tenia solium ou saginata, mas uma serpente maligna como uma sucuri amazônica ou a anaconda do filme de terror. Foi operada. Creio que os cirurgiões fizeram aquela encenação tipo Zé Arigó. Mas a paciente não sarou. Dizia que a intervenção fora inútil, pois a serpente deixara um ovo em sua barriga. O Ovo da Serpente pode ser o resquício da amígdala reptiliana no encéfalo dos humanos. VV, 16/abril/2008

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 17/04/2008
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