A VÉIA DO FOGO

A “Véia do Fogo” viveu em Picos e faz parte da galeria dos exóticos que conhecemos a partir dos anos sessenta. A história dos exóticos, na maioria dos casos, termina com a morte das personagens, isso não é nenhum artifício literário, é apenas e simplesmente reflexo de um fato social brasileiro - o reconhecimento e a homenagem somente a pós a morte. No entanto, que homenagem tiveram os exóticos, mesmo depois de mortos? Nenhuma! Por quase todo País existem ruas com nomes de coronéis assassinos, grileiros criminosos que enriqueceram espoliando os desvalidos, mas, jamais se viu uma rua com o nome de Manezim de seu Quincó, Antônio Delfina, Pedim de Michico, nem mesmo de Grande Otelo, que também bem fizeram à humanidade, até pelo fato de terem sido honestos e passado essa carga genética a seus descendentes.

Todas os nomes aqui listados, nunca obtiveram nenhuma homenagem de reconhecimento pela sociedade em que viveram, exceto “Barrão” a quem o povo atribuiu seu nome a um bairro dependurado na aba do morro por ter sido ele o primeiro morador a edificar ali um casebre rude e simples como o dono.

Embora a maioria dos fatos que narramos sejam reais, não temos as provas científicas, senão no próprio testemunho de histórias vividas e vivenciadas pelo próprio autor ou apanhadas em entrevistas no Piauí com Francisco de Assis Lima, o Diassis e José Alves de Santana, o ZÉ Bazar, em Minas Gerais.

Foi através de Diassis que conhecemos a Velha do Fogo, mais precisamente, na porta do Armazém Flor-de-lis onde a ela sempre passava à procura de algum agrado. Mas, quem sabe, exatamente, o nome verdadeiro da "Véia do Fogo"? Talvez Diassis, para quem com mais de cem anos ela fez uma colcha de retalhos e lhe deu de presente. Talvez se chamasse Francisca, pois atendia pelo nome de Dona Chica ou quem sabe, Francisca do Nascimento porque no tempo da escravidão, os patrões é que davam nome aos escravos nascidos na casa e para não vinculá-los a algum laço familiar com seus senhores, davam-lhes os nomes, Nascimento, Pereira, Santos, e outros. Do mesmo modo que nos Estados Unidos ocorria aos Thompsons e Jacksons.

Dona Francisca era de cor negra, filha de escravo e escrava até os doze anos. Mesmo sem estudo nenhum, tinha lá sua sabedoria e gostava de gracejar da própria velhice. Para isso usava contextos históricos brasileiros como incógnitas para não dizer literalmente sua idade.

- Quantos janeiros já conta, D. Francisca?

- Não sei quantos anos tenho, mas no ano dos três oitos eu tinha doze anos. Referia-se à Lei Áurea de 1888 e à sua libertação quando tinha doze anos de idade.

Seu apelido remetia ao próprio modo com que se apresentava. Não pedia esmolas, mas qualquer pessoa que a conhecesse, sabia de suas necessidades e já lhe estendia a mão com uma moeda. Como forma de agradecimento, dançava e cantarolava alguma música em língua desconhecida, pingando fogo e falando de sua vontade de casar-se. Acredita-se que nunca se casou, porque jamais falou de algum falecido marido, mas falar em arranjar marido, era o assunto que mais lhe agradava.

Dava muita atenção quando abordada por conhecidos ou mesmo estranhos, mas quem a chamasse de “Véia do Fogo” tinha que se afastar-se do alcance de sua bengala, senão o cacete comia, nas pernas no lombo... onde ela pudesse acertar uma bengalada...

A Velha viajava a pé de uma cidade a outra, com um pano amarrado na cabeça, em forma de manto, e, vestia roupas que iam do pescoço ao tornozelo. Muito limpa e cheirosa, não tinha cheiro de perfume de frasco, mas apenas e simplesmente de limpeza, de sabão de oiticica ou coco com que ela mesma lavava suas roupas. Morreu na década de oitenta, com aproximadamente 104 anos, mas não se sabe com certeza se morreu. Saiu um comentário que a onça havia comido a “Velha do Fogo!” Comer o quê? O corpo, supostamente dela, estava intacto, nem fera e nem abutre ousou banquetear-se, nem mesmo os vermes. Foi encontrado um corpo, só o couro e o osso, debaixo de uma árvore entre Picos e Ipiranga no Piauí. Provavelmente da “Velha do Fogo”, porque há muito tempo não carregava o peso de carne nas costas. Transportava sobre suas pernas cambotas apenas uma pele escura que lhe cobria a carcaça descarnada. Não havia carne para dar aos vermes, portanto, não havia cadáver, uma vez que cadáver significa carne dada aos vermes.

A velha sabia reza braba. Cobra e nenhum outro animal a atingiria. Morreu de fome ou sede, das duas coisas juntas ou nenhuma delas. Morreu com peso da idade, se é que morreu ou ainda continua pingando fogo por aí afora.

...

Adalberto Antônio de Lima