Hidrocarboneto, um real

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Furou, moço? Não! Gasolina? Sempre tem gente que pára aqui assim. Carro novo... Pensei que só em carro velho aconteciam essas coisas. Tem marcador, não? Tem! Esqueceu de olhar? Tem posto aqui perto. Posso ir comprar. Não! Vou embora não, moço! Todos os dias estou aqui. Esse lugar é meu ganha-pão! Quer que ensine onde fica? Vai comigo! Tudo bem!

Meu nome? Sei não, senhor. Meus amigos me chamam de Caboré. Por quê? Também não sei não, senhor. Minha mãe nunca me disse. Também nunca perguntei, não. Gosto do Caboré. Quando eu nasci? Faz tempo! Tenho mais de dez anos, sim. A data? Sei não. Nunca comemorei aniversário. Tenho sim, senhor. Oito irmãos. Sou o mais grande. Não. Apenas eu trabalho aqui nesse local. Tem outro, mas fica noutra parada. Perto. Nome dele? Bibi. Os outros? Ficam em casa. Sete homens. As irmãs? Dinha e Naná. Mais pequenas que eu... Estudam. Acho que já sabem o tal do bê-á-bá. Sei escrever não. Elas sabem. Tenho vontade de aprender não, senhor! É uma rabisqueira doida! Muito difícil! Não! Sei não, moço! Não é pra mim, não.

Seu nome? Nome bonito! Nome de rico!... Vou pedir pra minha mãe botar meu nome assim... Posso? Obrigado! Nome importado... Não conheço ninguém com esse nome, não. Não gosta? Causa de quê? Difícil de escrever?! Mas o senhor num disse que escrever era fácil? Uma vez ouvi minha irmã falando de um tal de ipsilone... Isso é nome de letra, moço?! Seu nome tem ipsilone? Tem! Então o senhor tem razão! Nome com essas letras deve de ser muito difícil! É. Acho que vou ficar com o Caboré mesmo! Perguntar a minha mãe? O senhor acha que ela sabe meu nome? Será que ainda lembra? Faz tanto tempo que eu nasci... Ela nunca que disse meu nome... Num alembra, não! Acho que já nasci Caboré! O senhor sabe o que quer dizer caboré!? É quem vive no mato?! Vixe! Conheço mato não, moço! Sempre morei na periferia.

“Quem vive no mato, quem vive no mato...” O senhor acha que devo contar o significado do meu nome pra minha mãe? Não! E pros meus amigos? Não! Por quê?! O que é chacota? Zombam não! Meto a porrada se fizerem isso! Sou respeitado onde moro... Chacotar de mim é perigoso... Faço correr meio mundo... E corro atrás até pegar! Não gosto de violência, mas tenho que me defender. Aqui nas ruas somos muito amigos, na porrada e nas alegrias; nos casos de briga e nos de partilha... Mas quem chacotar – gostei dessa palavra, moço! – apanha!

O senhor tá cansado? Falta de costume... Anda sempre de carro, né? Sabia. Num cansa, não, de tanto andar? Gosto não! É. Sempre de ônibus. Saio cedo. Então não vem tão lotado assim... Gosto não! Quando volto é ruim. Horário que o povo volta do trabalho, cansado... Gente fumando; gente conversando alto; gente discutindo; meninas escorregando nos corredores, fugindo dos tarado... Já vi muito! Gosto disso não! Sou novo. Careço dessas sem-vergonhices ainda não. Faço nada não. Tenho medo. Gosto de briga não. Às vezes elas ficam brabas, xingam o garoto... Feio é quando é um velho atracado atrás da moça! Tenho nojo e dó... Nojo dele e dó da menina... Tem briga sim! Quando tem briga o povo ajuda... Não. Nunca me meti... Tenho medo!

Tá ali o posto! Tem outro mais perto, mas aqui a gente ganha um trocado quando traz alguém... O dono do outro é muito miserável, muquirana. Ficou brabo? Ainda bem. O senhor é legal. Gosta de conversar, né? E é muito calmo. Só não tem paciência com a mulher? Nossa! Parece que depois que a gente casa perde a paciência com a mulher! Ah! Pensei que fosse verdade! O senhor é engraçado também! É jornalista! É por isso que sabe o que significa caboré, né? Lê muito. Num cansa não ficar um tempão com a cara enfiada num livro? Falta do que fazer, num é? É bom! Acho não. Prefiro jogar bola. Jogo à noite, quando chego. Onde jogo? Numa quadra que tem perto de casa. Descalço! Tem chuteira não, moço! Depois que inventaram essa tal de bola afrescalhada não tem mais craque aqui! Gosto de bola. Não. Jogo por prazer, não por dinheiro! Se ainda gosto de assistir a jogo? Gosto não, senhor! Perdeu a graça! É tudo muito requintado, cheio de frescurinhas... Gostava de ouvir meu pai falando dos craques do tempo dele! Falava com tanta emoção! Alguns morreram pobre, mas fizeram a alegria do povo! Tem mais isso não... Muita grana e pouco futebol! Endeusam qualquer um que joga uma partida boa... e tem uns comentaristas que meu Deus! Gosto não, moço! Prefiro jogar!

Vai colocar apenas cinco litros! Depois enche o tanque, né? Vai encher aqui? Que bom. Aumenta a grana! Se ganho bem no sinal? Depende. Tem dia que dá legal; outros, não consigo quase nada. Gosto de ficar lá. Meus parceiros são legais. Brincamos muito quando o sinal abre e conhecemos um pouco da agitação das pessoas que trabalham. Não sei se queria viver como elas vivem... Estão sempre apressadas, nervorsas. Discutem por tudo! É uma barulheira só! Odeio quando buzinam mal o sinal abre... Se pudessem, passariam por cima dos outros carros. O senhor sabe por que buzinam tão rápido? Costume! Costume feio, então. Tem vez que o sinal abre e o carro lá detrás começa a buzinar, mal o primeiro carro começou a andar... Esquisito... Entendo isso não! Tem gente que até desce do carro... Uma vez vi um senhor fazer assim: quando o homem que estava atrás dele começou a buzinar, ele desceu do carro e abriu o caput. O homem enlouqueceu! Desceu. Quis brigar. Ele apenas disse que o carro tinha pifado... O outro saiu resmungando. Entrou no carro e, após perder mais um sinal verde, fez a manobra e saiu. Quando o homem foi embora, ele saiu sorrindo, baixou o caput, ligou o carro e sumiu... Gente doida, né?!

O senhor já discutiu no trânsito? Não! Sei. Apenas com a mulher, né! Mas gosta muito dela, não gosta? Ela é impaciente! Dizem que todas são. Tem filhos? Sabe o nome deles? Bonitos nomes... Eles têm ipsilone também nos nomes? Se conheço o ipsilone? No dia que minha irmã estava falando dele eu dei uma espiadinha e vi... Parece um pau de baladeira! Por que o senhor está rindo? Gosta de caçar? Não! Ah! Mora em apartamento e não tem contato com as coisas do mato... Também eu não conheço muito bem o interior, mas gosto de caçar passarinho nos terrenos baldios lá do bairro. Se ainda têm terrenos assim, abandonados, onde moro? Tem... E muitos!

“Os olhos da cara” o preço da gasolina! Gasta muito com o carro? Nossa! Se ganhasse essa dinheirama toda por mês nem precisava pedir trocado nas calçadas! Jornalista vive bem, né!? Mas lê muito! É bom ser jornalista? É! Também gosto de ser flanelinha. Se alguma garota me paquera? Não, moço! Que é isso! Sou de bem! Sou disso não! Se olho pra elas? Às vezes. Tem umas que são lindas, parecem criadas com muito leite e todinho – pele macia, branquinha; outras nem olham a gente. Fecham o vidro do carro. Pensam que somos trombadinhas! Alguns são, sim. Mas a maioria é gente boa e trabalhadora. Os malvados levam o dinheiro da gente também! Os mais pequenos é que sofrem! Eles chegam e levam tudo dos coitadinhos. Chega a dar dó! Aqui num tem muito, não. A gente se junta e bota eles pra outro local!

De noite? Fica pior ainda. Muita garota de programa – moças novas! Traveco? Ih! Nem se fala... É cada um que enche os olhos da gente! Não mexem com a gente, não. Aqui é cada um na sua e todos em paz! Apanham. A Polícia já chega batendo! Melhorou. Os policiais de hoje são mais calmos. Meu pai dizia – ele era flanelhinha, herdei dele a profissão – que eu tivesse muito cuidado com a Polícia, mas hoje não mexem com a gente. Até gostam quando limpamos o vidro das viaturas! Carro bonito, né! Aquela luz vermelha piscando e fazendo aquele barulho... É muito legal! Gosto da Polícia, sim. Se num tivesse eles aqui isso era uma zueira só... Quem não gosta da Polícia é vagabundo, moço! A Polícia trabalha muito, prende... A justiça é que solta logo! País bom esse nosso, não? Se tem gente rica aqui à noite? Quem o moço acha que sustenta essa gente toda!

Cuidado! Derramou gasolina... Vai estragar a pintura do carro do homem... Que frentista bocó! Se o posto fosse meu, mandava embora!

Quer que eu leve a gasolina? Precisa sim. Eu levo. Cheiro gostoso! É feita de que mesmo? Hidrocarboneto! Parece Caboré de água! Hidro não é água, né? Eita que nome mais doido que minha mãe me deu! Rima até com gasolina... “Caboré de água que vive no mato”... “Nome doido... Nome doido... Nome doido...”

O senhor parece que num tem muito tempo de conversar! Tem não! Vida corrida... Entendo. Era? Ele gostava de falar pros apóstolos enquanto caminhava! É mesmo, né, moço! Parece que caminhando a gente tem do que falar... O senhor devia caminhar mais, então! Pode não! Por quê? “Muito trabalho... Muito trabalho... Muito trabalho...” Desconta as disgrama da vida escrevendo... Serve não! A solidão num presta... A gente nasceu pra viver com os outros. É tão bom quando o sinal abre e a gente fica brincando nos canteiros... Vida boa a minha! Converso muito, brinco – dou duro, mas gosto! Tá pesado! Parece que vai crescendo o peso quando a gente anda também! Carece não. Eu levo.

Tem mangueira? Sei colocar, sim. ‘Stou acostumado com isso... Carros novos, mas donos que não olham o ponteiro. “Cheiro bom... Hidrocarboneto... Caboré de água que vive no mato”. Pode fechar. Completa no posto? Avisa que estava comigo, o Caboré, tá! E num coloca com o lesado, não... Mancha a pintura o HI-DRO-CAR-BO-NE-TO. Brigado, moço! Jornalista ganha bem! Oba, um real!

Nijair Araújo Pinto

Fortaleza-CE, 22 de outubro de 2001.

Do meu livro 'Lapso temporal'