Como seria?

Miguel trabalhava naquela empresa há tanto tempo, que quando perguntavam há quanto tempo exatamente ele era funcionário, um simples número não parecia suficiente para expressar os anos.

O homem tinha o que as pessoas chamam de "segurança financeira". Uma vida sem riscos, bem regrada, nunca faltou qualquer coisa que desejasse, carteira assinada, garantia de contribuição ao governo que, como era esperado, um dia voltaria para seu bolso. Todos esses pensamentos guiavam a rotina de trabalho de Miguel.

Era nisso que ele tentava pensar quando vinha Aina, a chefe do setor. Há anos o trabalhador-exemplo vinha escondendo toda sua antipatia pela mulher atrás de um sorriso polido e medido. Ninguém desconfiava, pois nas conversas comuns entre os colegas de escritório, nenhuma queixa partia de Miguel e ele também não aumentava uma reclamação recém-jogada.

Poxa, faltava oito meses para a aposentadoria. E o fim da vida, que ele esperava que durasse pelo menos mais uns 25 anos, seria tão bom... Era um pensamento tão carinhoso! Um pensamento que afagava as idéias do homem conformado. Sempre.

Numa manhã chuvosa de uma quarta-feira de um mês qualquer, Miguel recebeu um "recado" escrito pelas mãos da secretária de Aina.

"Michel, querido colega de escritório, todos os dias penso como seria se você me entregasse os relatórios na hora que eu peço. Como seria se você não chegasse atrasado sempre? Como seria se eu tomasse meu café sempre quente e, se antes disso, o meu café sempre estivesse na garrafa? Mas você sempre chega até ela primeiro. Como seria se você realmente escutasse o que eu digo quando temos reuniões individuais? Como seria se você aumentasse sua eficiência dentro do escritório? Como seria se eu não falasse russo pra você? Enfim, me perdoe esse dia, acho que estou um pouco influenciada pela chuva, mas tenho plena certeza de que em dias mais claros, meus pensamentos teriam a mesma essência. Estou à disposição para qualquer dúvida que precise ser esclarecida. E certamente haverá. Aina".

Miguel, do alto de seu 1,63 e placidez, teve pensamentos algodão-doce quando terminou de ler o "recado". Suas férias sem prazo para terminar pintavam sua mente quando ele sentiu um não-sei-o-quê revolver cada milímetro cúbico de sua pele. Sentiu-se tão confiante, corajoso e chegou à conclusão de que para chegar aos anos de descanso, precisou trabalhar quase o dobro, numa rotina infernal, numa cidade enorme, onde as pessoas sempre se esbarravam e onde as reuniões fora do expediente sempre acabavam sendo motivo de conversas sobre problemas da empresa.

Isso tudo ainda passaria como incômodos normais de qualquer pessoa que precisa trabalhar para sobreviver. E perguntas começaram a pisar o algodão doce. Por que nunca tinha ido morar numa cidade menor? Por que nunca procurou fazer amigos fora do escritório? Por que achou que aquele emprego era a segurança de sua vida? E, acima de tudo, era mesmo necessário trabalhar tanto tempo com uma pessoa tão desagradável?

Aos poucos foi notando que esses pensamentos provocavam um aperto no peito, um nó de marinheiro na garganta, olhos úmidos, suor frio e a certeza de que o que era tão certo, na verdade era um nada. Deixou-se desabar na cadeira e não ouviu quando um colega disse alguma coisa supostamente engraçada. Já estava com uma caneta na mão.

"Bom dia, Aina.

Como seria se todos os seus "recados" começassem com uma saudação amistosa, para eu sentir que pertenço à mesma espécie que você e que, por conta disso, uma ínfima simpatia é normal acontecer?

Como seria se, depois de todos esse anos, você soubesse que meu nome é Miguel, e não Michel?

Como seria se antes de escrever suas bombas, você olhasse dentro da gaveta de relatórios, ou até mesmo para frente? Geralmente há uma pilha de papéis lá.

Como seria se você me elogiasse pela minha pontualidade em todos esses anos? Você certamente nem sabe qual a cor dos meus olhos e não conhece algum tique que eu tenha.

Como seria se, de vez em quando, você pessoalmente conversasse com as pessoas, ao invés de achar que essa mania de mandar recados pode substituir uma franca conversa?

Como seria se você notasse que, mesmo no século XXI, ainda é comum o contato humano e a educação?

Como seria se eu não tivesse me submetido ao seu gênio? Como seria se eu tivesse descoberto antes, que você, na verdade, me acrescentou tão pouco, que eu nem posso dizer o quê exatamente?

Como seria se eu tivesse pensado nisso tudo antes?

Na verdade, acho que ainda tenho tempo. Então, a partir de hoje, você não vai mais me ver chegar atrasado num de seus delírios diários, porque eu não vou chegar. Vou fazer mais dessa vida. Ah, que alívio, sabe? Não, você não sabe.

Mas, antes de ir, eu me pergunto: como será sua vida sem mim dentro desse escritório? Acho que o seu trabalho começa mesmo agora. Até esse momento, beber café era sua função.

Ora, mas o que é isso? Não chore. E eu não me importo de sair faltando oito meses para o meu fim majestoso. Você já pensou quantos dias tem um mês? Quantas horas? Meu Deus, é infinito! Ah, não. Eu não posso mais ter pessoas como você para azedar oito longos meses da minha vida. Por isso, te deixo um abraço".

Depois de tantas pessoas tomando Miguel como exemplo, o escritório quase deixou de funcionar. Era fácil achar gente de uma hora para outra, mas era muito difícil que alguém quisesse ou estivesse preparado para trabalhar. E aí quem precisou ir atrás de outro porto seguro foi Aina. Sabe que eu não tive mais notícias dela?

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